18.7.09

CARO DIÁRIO

Roteirizado, dirigido e protagonizado por Nanni Moretti.
Este é mais um dos meus dez filmes-texto favoritos. Aliás, não tanto um filme-texto, mas sim um filme-pausa, hehe...



CAPÍTULO UM
NA LAMBRETA

MORETTI escrevendo. Close em sua mão.

MORETTI - Caro diário, existe uma coisa que gosto de fazer mais que tudo. 

MORETTI em sua moto, circulando pelas ruas de Roma.

MORETTI - (off) No verão em Roma, os cinemas estão todos fechados ou passam filmes como ''Sexo, Amor e Pastoreio'' ''Desejos Bestiais'', ''Branca de Neve e os Sete Negros'' Ou filmes de terror como ''Pesadelo''. Ou, então, algum filme italiano. 

Vozes em off.

HOMEM - Tenho medo de retomar o jogo. Sou um covarde.  O que aconteceu nesses anos todos? Que houve comigo? Já não sei mais.

HOMEM #2 - Suas têmporas estão grisalhas.

Vemos dois homens e uma mulher falando.

HOMEM - É o peso das derrotas.

MULHER - Uma série ininterrupta de derrotas.

HOMEM - Nossa geração, no que se tornou? Hoje somos publicitários, arquitetos, corretores, deputados, assessores, jornalistas... Nós mudamos tanto! Sempre para pior. Hoje somos todos cúmplices. Mas por que tem que ser...

MORETTI resmunga, sentado numa sala de cinema.

MORETTI - Todos cúmplices.

MULHER - Não há nada de concreto na minha vida. Quando foi que saímos para passear? Acho que continuamos juntos só por hábito.

HOMEM - Todos se envergonham de mim. Que dor de cabeça! Até os analgésicos não são mais os mesmos. Lembra do barulho que faziam dentro dos vidros antigos? Agora tudo está mudado. Tudo está mudado.

MULHER - Sabe o que acontece, Antonio? Você piorou. Não tem mais nenhum sentimento autêntico.

HOMEM #2 - Ficamos velhos, amargos, não somos honestos no trabalho. Pregávamos coisas horrendas, violentíssimas, queríamos agir... e agora vejam como ficamos embrutecidos.

MORETTI nas ruas, em sua moto.

MORETTI (off) - Vocês gritavam coisas horrendas, violentíssimas... e ficaram embrutecidos. Eu gritava as coisas justas... e agora sou um esplendido quarentão.

MORETTI circulando novamente pela cidade. Dia ensolarado.

MORETTI - (off) A coisa que eu mais gosto na vida, é ver as casas, ver os bairros... e o meu bairro favorito é o Garbatella. Fico perambulando pelos bairros populares. Eu não gosto de ver as casas somente por fora... Às vezes gosto de olhar também como são por dentro. Então, eu toco a campainha e peço para fazer uma entrevista. Digo que trabalho na produção de um filme e o dono me pergunta. ''Do que fala esse filme?'' Eu não sei o que dizer.

MORETTI conversando com alguém.

MORETTI - Eu digo, ''Meu filme é a história de um confeiteiro trotskista... um confeiteiro trotskista na Itália dos anos 50. É um musical. Um musical.''

MORETTI em frente a um prédio.

MORETTI (off) - Nada mal, um musical sobre um confeiteiro trotskista na ltália conformista dos anos 50.

MORETTI contemplando outro prédio, ao lado de SILVIA.

MORETTI (off) - Quando ando de lambreta, gosto de parar para olhar as coberturas onde gostaria de morar. Me imagino reformando os apartamentos lá do alto. Apartamentos que os donos não têm a menor intenção de vender. Um dia vendo uma que parecia mais acessível que as outras eu e Silvia subimos para olhar. Perguntamos quanto custava e eles nos disseram, ''Dez milhões de liras o metro quadrado''. Dez milhões de liras o metro? ''Não se discute o preço do metro dessa rua, é uma rua histórica'', disse o proprietário. ''Foi aqui que Garibaldi fez a resistência.''

MORETTI em sua lambreta, percorrendo uma ponte.

MORETTI (off) - Não sei, não consigo compreender. Eu posso ser maluco, mas eu amo esta ponte. Tenho que passar por aqui pelo menos duas vezes ao dia.

MORETTI parado num cruzamento. Um homem num carro vermelho pára também, esperando o semáforo abrir. MORETTI aproxima-se dele.

MORETTI - Sabe no que estava pensando? Estava pensando em uma coisa muito triste, sabe que eu... mesmo em uma sociedade mais decente que esta... estarei sempre entre uma minoria de pessoas. Mas o caso é que não é como acontece nos filmes... em que o homem e a mulher se olham e brigam... numa ilha deserta porque o diretor não acredita nas pessoas. Eu acredito nas pessoas, mas não na maioria delas. Acho que sempre me entrosarei melhor com uma minoria.

HOMEM (desinteressado) - Tudo bem. Até logo.

HOMEM sai de cena, dirigindo. MORETTI permance em pé, surpreso.

MORETTI - Até logo.

MORETTI novamente em sua lambreta percorrendo ruas num dia ensolarado.

MORETTI (off) - Na verdade, meu sonho sempre foi saber dançar bem. ''Flashdance'' é o nome do filme que mudou definitivamente a minha vida. Era um filme apenas sobre dança. Saber dançar! Mas no fim eu acabo sempre só olhando. O que também é bom, mas é muito diferente. 

MORETTI chega a uma festa. Pára, desce de sua moto e observa os outros dançando. Pouco depois, vai cantar com uma banda. Depois disso, observa mais o movimento, sorrindo. Aproxima-se de um casal que estava conversando.

MORETTI - Sabe qual é o meu sonho? Meu sonho é e sempre foi saber dançar. Eu nunca mais fui o mesmo depois que vi... aquele filme ''Flashdance'' com Jennifer Beals. Aquela dançarina lá é a Jennifer Beals?

HOMEM - Não.

MORETTI - Puxa, como parece! Vocês viram o filme?

HOMEM - Não.

MORETTI se afasta e continua a observar os outros dançando.

Mais cenas de MORETTI percorrendo ruas.

MORETTI - (off) Spinaceto é um bairro construído recentemente. E todos falam mal dele. ''Aqui não é Spinaceto!'' ''Onde você mora?'' ''Spinaceto?'' Eu lembro que um dia, eu li uma história que se chamava... ''Fuga de Spinaceto''. Falava de um rapaz que fugia daquele bairro... fugia de casa, e nunca mais voltava. Então, vamos ver Spinaceto.

Pára sua moto próxima a um homem que está sentado sobre um muro.

MORETTI - Spinaceto? Esperava coisa pior, não é nada mal. Era exatamente o que eu estava pensando. Tchau.

HOMEM - Tchau.

MORETTI sai com sua moto.

MORETTI - Casalpalocco. Passando por essas casas, sinto cheiro de agasalhos... que substituem outras roupas. Um cheiro de vídeo-cassete... de cães de guarda nos jardins, pizzas prontas em caixas de papelão. Mas por que vieram para cá, há 30 anos?

MORETTI pára e fala com um homem que acaba de sair de um carro.

MORETTI - Desculpe, mas por que o senhor veio morar aqui em Casalpalocco?

HOMEM - Veja o verde, a tranqüilidade.

MORETTI - Sei o verde... mas deve ter vindo para cá há uns 30 anos, não é?

HOMEM - Em 1962.

MORETTI - Há 30 anos Roma era uma cidade belíssima.

HOMEM - Mas aqui é diferente.

MORETTI - É diferente agora... mas na época, Roma era uma cidade linda, entende? lsso me assusta, cães de guarda, vídeo-cassete, chinelos?

MORETTI percorrendo as ruas. Pára ao ver um casal andando. Fala à mulher.

MORETTI - Jennifer Beals? Jennifer Beals? Jennifer Beals? Jennifer Beals?

O casal finalmente pára e andar e responde.

JENNIFER - Sim.

MORETTI - De ''Flash Dance''?

JENNIFER - lsso.

HOMEM (em inglês) - Quem é ele?

JENNIFER - Eu não sei.

MORETTI - O que foi que ele disse?

JENNIFER - ''Quem é você''.

Enquanto MORETTI fala, ela vai traduzindo para o homem.

MORETTI - É que eu sempre quis muito saber dançar. Por exemplo, se eu morasse em Emilia-Romagna...  onde existem asilos, hospitais que funcionam... escolas de dança, tango, merengue, cha cha cha, mambo... e quando eu ouvisse música, eu pudesse dançar. E não só ficar olhando o pessoal dançar. Que sapatos! Como são cômodos! São simples, mas os pés devem ficar bem confortáveis, não é?

JENNIFER - Sim, são bem confortáveis. (ao homem) Acho que esse cara deve ser... Sabe, um maníaco por pés. Não, só vamos relaxar e...

MORETTI - Disse que sou louco?

JENNIFER - Não, não.

MORETTI - Não disse ''louco''?

JENNIFER - Eu disse, ''Off'.

MORETTI - O que é isso?

JENNIFER - Quer dizer especial, peculiar. Quase louco, mas não é bem isso. Acho que ''off' foi a melhor definição, não bem o que eu queria dizer mas...

HOMEM - Sei, como ''fora do normal''?

JENNIFER - Sim, porém, algo mais preciso. Algo mais preciso, talvez ''whimsical''.

MORETTI - ''Whimsical''?

JENNIFER - É quase bobo. Bobo.

MORETTI em sua lambreta, olhando mais prédios.

MORETTI (off) - Mesmo quando vou a outras cidades... a única coisa que gosto de fazer é olhar as casas. Como seria lindo um filme feito só com casas. Panorâmica de casas. Garbatella, 1927. Vila Olímpica, 1960. Tufello, 1960. Vigne Nuove, 1987. Monte Verde, 1939.

MORETTI em frente a uma sala de cinema. O filme, anunciado numa placa grande: "HENRY CHUVA DE SANGUE". MORETTI entra na sala.

Na tela, um homem grita aoutros dois.

HOMEM #1 - Foi o combinado, pegue os 50 dólares e vão para o inferno!

Um dos outros enfia uma faca na mão do que primeiro falou.

HOMEM #2 - Vou te pagar. Vou te pagar direitinho.

Começa uma luta entre os dois. MORETTI sentado, um pouco assustado. Enquanto ouve-se os gritos dos homens lutando, MORETTI faz umas caretas. Na tela, um dos homens quebra um monitor na cabeça do HOMEM #1. Ainda no filme: Ext. Noite um carro estaciona.  O homem que sai do carro fala a outro. "Estão precisando de ajuda? Precisa de ajuda ou pode se virar sozinho?"

MORETTI saindo do cinema, desencantado e senta-se num banco.

MORETTI (off) - Durante horas eu ando pela cidade... tentando me lembrar quem me falou bem desse filme. Eu tinha lido uma crítica no jornal, alguma coisa positiva sobre Henry. De repente, me lembrei. (MORETTI sentado a um amesa, Ext. - Sol) Encontro o artigo e o copio no meu diário. Aqui está. ''Henry mata pessoas, mas é quase um homem bom... de poucas palavras, mas só os fatos contam. Mas seu amigo Otis é um crápula. Henry tem uma louca solidariedade com suas vítimas. É um príncipe de sangue azul da aniquilação... prometendo uma morte piedosa. Otis, não. O diretor acorda o público para um pesadelo ainda pior... com uma ducha final de sangue, olhos perfurados... Carne torturada. A abominação. Henry é o primeiro a desmembrar com grande lucidez... a filosofia criminal lambrosiana de Hollywood.'' Eu fico pensando, será que quem escreve essas coisas... quando chega a noite, antes de adormecer... tem um momento de remorso?

INT. DORMITÓRIO

Homem deitado numa cama, chorando em desespero crescente. MORETTI sentado a seu lado, numa cadeira.

MORETTI - Quando começou? Quando tudo isso começou?

HOMEM - Não sei.

MORETTI - Talvez quando tenha escrito... (lendo) ''Esse filme coreano é um melodrama De época com roupas... e sobretudo chapéus delirantes, feminista, flamejante, demoníaco... filmado como se fosse um Spielberg, em ritmo e espaço futuristas.'' Tem também ''O Pasto Nu'' de Cronenberg. ''Um puro underground de custo elevado. Um verdadeiro filme cult. Não que as mulheres, para Jonathan Demme, sejam melhores... ou que equivalham ao que para Lin Piao eram os proletários... e sub-proletários dos três mundos juntos. Só que suas mulheres têm fibra para manter a parte justa... na guerra do imaginário feita nas aulas de ''lntervenções Cirúrgicas''. De fato, antes que Lula e Sailor se abracem em um final feliz... sussurrando ''Love me tender'', ainda que faltem muitos anos de cadeia... para Sailor, cabeças humanas dilaceradas voarão. Vira-latas pegarão mãos decepadas e fumarão centenas de cigarros... de todos os tipos. Longos, suaves e mentolados.''

Ext. Dia. MORETTI lendo os jornais. Manchetes: "A MORTE DE PASOLlNl" "O MEU lNFERNO" "Pasolini estava vivo quando o carro o atropelou várias vezes." "Pasolini foi assassinado por um garoto de programa."

MORETTI percorrendo mais ruas em sua lambreta.

MORETTI (off) - Não sei porque, mas nunca estive no local onde mataram Pasolini.

CAPÍTULO 2
ILHAS

MORETTI num barco, mexendo em uns papéis.

MORETTI (off) - O barco está chegando a Lipari. Vou visitar um amigo que se mudou para lá há 11 anos. Desde então, estuda apenas ''Ulisses'' de Joyce. Eu estou começando a escrever meu filme... e trouxe comigo todos os recortes que vou precisar para o trabalho... e que guardei nos últimos anos. Tenho certeza de que em Lipari farei alguma coisa.

EX. DIA RUAS

MORETTI e GERARD andando por ruas engarrafadas. 

INT. DIA PADARIA

MORETTI observando o balcão.

ATENDENTE - Bom dia.

MORETTI - Bom dia. Um suco de laranja e... um sanduíche...

ATENDENTE - Já vou atendê-lo.

MORETTI - De mussarela.

MORETTI observa na televisão, a imagem de uma freira.

FREIRA (off) Deus, dê-me forças.

MORETTI - Um sanduíche de mussarela com tomate, obrigado.

Começa a passar um show de dança. MORETTI se empolga e começa a dançar.


EXTERIOR - DIA

MORETTI e GERARD sentados a uma mesa, bebendo.

GERARD - O que você estava assistindo?

MORETTI - Quando?

GERARD - Lá dentro, na televisão.

MORETTI - Não, não era a televisão, não. Era um filme estranho. Silvana Margano antes era freira, depois no meio, ela dança. Você deve ter achado também.

GERARD - Nunca.

MORETTI - Nunca assiste televisão?

GERARD - Nunca. Há trinta anos que eu não vejo televisão. Sabe o que Magnus Enzensberger disse? Eu concordo com ele.


EXTERIOR - DIA - RUA CONGESTIONADA

Muitas buzinadas, muitas pessoas.

MORETTI - Pode não acreditar, mas é a primeira vez em tantos anos que estou aqui que está essa confusão. Não acredita.

GERARD - Acredito.


INTERIOR - DIA - SALA CASA GERARD

[Moretti e Gerard estão sentados, cada um a uma escrivaninha, mexendo nuns papéis.]

GERARD - Os recortes são de notícias engraçadas, curiosas?

MORETTI - Curiosas. Pois é, no decorrer dos anos eu só acumulei notícias e artigos bobos, personagens desagradáveis e evidentemente, é... (barulho de buzinas) Sou atraído por essas coisas.

MORETTI levanta-se  e vai até a janela.


EXTERIOR - DIA - NAVIO

[Ambos num navio]

MORETTI - (V.O.) Havia muito barulho, muita confusão em Lipari. Decidimos então partir para Salina, uma ilha mais tranqüila, familiar. Lá existem uns amigos de Gerard que têm filhos. Aliás, um filho. Parece que em Salina todos têm só um filho. Parece que lá conseguiremos fazer alguma coisa.