18.7.09

Parte 2

INT. SALA DE ESPERA

MORETTI e GERARD estão cada um lendo algo,s entados, concentrados. A televisão está ligada.

MULHER (off) Não precisa fazer isso, não é necessário. Não está sendo gentil considerando que estou trazendo seu presente de casamento.

OUTRA MULHER (off) É mesmo? Quanta gentileza!

GERARD muda de lugar várias vezes, aproximando-se cada vez mais do televisor.

HOMEM (off) Olha quem está aqui. Não vai fechar o cassino.

MULHER (off) - Por que diz isso?

HOMEM (off) - Vou lhe dizer... porque odeio profundamente pessoas como você. Ilude as pessoas alimentando falsas esperanças. E quando consegue o que quer, joga-as no lixo. 

HOMEM #2 (off) Vá para casa e acalme-se.

HOMEM (off, entrando) - Vou lhe dizer, essa Catedral jamais verá a luz do dia. Pelo menos enquanto eu viver.

MULHER (off) - Oi.

HOMEM (off) - Oi.

MULHER (off) - Que bom que voltou.

HOMEM (off) - Por quê?

MULHER (off) - Preciso lhe dizer uma coisa.

HOMEM (off) - Espero que seja uma boa notícia.

MULHER (off) - Não acho que será uma boa notícia. Encontrei a Gina hoje, e ela disse que Keith quer se vingar de você. A qualquer preço.

HOMEM (off) - Isso não é novidade.

MULHER (off) - Há algum tempo ele me disse a mesma coisa. 


INTERIOR - NOITE - SALA DE ESTAR CASA 3 e 4

[Moretti, Gerard, 3 e 4 estão sentados no sofá, de frente para a TV, que está num volume baixíssimo.]

3- É incrível que para Pedro esses primeiros anos não significarão nada, porque não vai saber de mais nada. Não poderá lembrar-se deste período de tanta intimidade, aproximação, quando precisou tanto de mim.

4- Esta semana aconteceu uma coisa muito importante: ele largou a fralda. Pensamos em tirar umas duas semanas de férias para fazê-lo aprender. E... Ao invés disso ele ficou muito esperto, muito...

3- [interrompendo-o] Ao invés disso ele aprendeu tudo sozinho e não errou nada, começou a comportar-se como uma pessoa adulta.


INTERIOR - DIA - SALA DE JANTAR CASA 3 E 4

[Todos sentados à mesa, exceto 4. 3 continua a tagarelar, numa quase continuação da cena anterior.]

3- E o primeiro dia de creche. Ficamos acordados a noite toda, estávamos preocupadíssimos, agitados...

MORETTI - A agitação do primeiro dia de escola.

3- É, a agitação do primeiro dia de escola, é... Pedro estava dormindo, tranqüilo, nem podia imaginar que no dia seguinte sua vida mudaria. (a 4, que entra) Está dormindo? (4 responde com um sutil gesto de cabeça. 3 continua) Pedro está atravessando uma fase complicada, apesar de transitória. Passou de um regime em que lidava somente conosco para um regime de creche, diferente...

(Gerard tenta aumentar o volume da TV, ao que é impedido pela vaca 3. Gerard, sem alternativa, leva a mão ao ouvido enquanto chega mais para perto da TV, de uma forma hilária)

3- Não, ele está dormindo. O volume está bom. Pôde ver tantas crianças, tantas pessoas...


EXTERIOR - DIA - LOCAL

[Gerard, Moretti, 5, 6 e Danielle andando bem mais rápido que eles, a fim de fugir.]

5- Danielle, Danielle!

GERARD - Ontem assisti a televisão, foi um programa bom mesmo. Mas eu não entendi.

MORETTI - Aquela família.

6- Vocês se assustaram.

MORETTI - Sim, um pouco, mas...

5- Ah, eles exageraram com Pedro e nós, com Danielle. Temos um relacionamento diferente. Queríamos ter outros filhos, mas temos muito medo que Danielle receba mal.

6 - Perguntamos a ele a cada dois ou três anos: "Danielle, quer uma irmãzinha ou irmãozinho?" Ele fica danado. Tenho medo. Temos medo.


EXTERIOR - DIA - RUA

[Moretti no orelhão.]

MORETTI - Ihh, ohh, o burrinho faz ihh ohhh. Ah, você sabe, mas eu não sei fazer o som de outros animais.


EXTERIOR - DIA - LOCAL

[Moretti escrevendo num bloco de anotações]

MORETTI - (V.O.) Há anos que Salina estava dominada por filhos únicos. Cada família tinha um filho e somente um, a quem era confiado o comando da situação. Era praticamente impossível a comunicação por telefone porque nas casas os aparelhos eram sempre interpelados pelas crianças...


EXTERIOR - DIA - RUA/ TELEFONES PÚBLICOS

Todos os seguintes personagens estão no orelhão. As crianças, cenário sala de estar.

[moça ao telefone] Oi, é a Rosana. O papai ou a mamãe estão?

[criança] Eu vou passar para o papai, tchau. [bate o telefone no gancho]

[mulher] Paolo?

[homem] Giovani?

[outro homem] Sabe quem sou eu? Como eu me chamo?

[criança] Pronto, quem fala? Aqui é o Paolo.

[Moretti] Como se chama? Quantos anos tem? Me conhece? Como eu me chamo?

[Paolo] Como faz o porquinho?

[homem] Como faz o hipopótamo?

[Moretti] A girafa eu não sei; ihhh é o porquinho. O rouxinol eu não sei.

[mulher] A mamãe ou o papai estão?

[Paolo] A mamãe e o papai estão em casa, mas agora eu vou te contar uma estória. Era uma vez...

[mulher, pausadamente] Você está entendendo o que eu estou dizendo?

[bebê. Silêncio. Três orelhões ocupados pó uns malucos implorando que as crianças chamem seus pais.]

[mulher] Chame a mamãe.

[homem] Eu não sei imitar isso.

[Moretti] Conta para ele como faz o porquinho óinc óinc.


EXTERIOR - DIA - LOCAL

[Moretti encontra uma bola perto da areia e começa a chutar. B.G.: melancólico.]


INTERIOR - DIA - DORMITÓRIO CASA 5 e 6

[Escuridão. Casal 5 e 6 entra no quarto, acendem os abajures e acordam Moretti e Gerard, tirando-lhes os cobertores.]

5- Acorda, acorda.

MORETTI - [cobrindo o rosto] A luz, a luz!

6- Já acordamos o Danielle, ele está esperando.

5- Há quinze minutos.

MORETTI - Pra que?

5- Porque essa é a pior hora do dia.

MORETTI - Por que?

5- Porque faltam quinze para as três.

MORETTI - Por que?

GERARD - Como assim por que? É a hora do lobo.

5- A hora do lobo é a pior hora, é a hora em que se está mais sozinho. Por favor, acorda.

6- Há doze anos que acordamos o Danielle às três horas e o levamos para a nossa cama. Então, vem com a gente?


INTERIOR - NOITE - SUÍTE CASAL

[5, 6, Moretti e Gerard entram no quarto em que Danielle - Dan. - os espera, no centro da cama, sonolento. Seus pais lhe perguntam]

5- Como está esta noite?

DAN.- Bem.

5- Está com medo?

[todos se acomodam na cama. Gerard e Moretti voltam a dormir.]

DAN.- Não.

5- Viu quantas pessoas vieram te fazer companhia?

DAN.- Vi.

6- Não está com medo, está?

DAN.- Ah, estou sim.

5- O Danielle nunca teve uma babá. 

MORETTI - Não? Por que?

5- Porque sempre ficamos com ele.

MORETTI - Nunca saíram?

6- Nunca. Lemos sempre alguma coisa.

5 - Lemos Von Kleist.

6 - Hegel.

5 - Spinoza.

6 - Lemos Frederico Totsi.

5 - Lemos Xenofonte, lemos tudo dele e depois Heródoto.

6 - E depois?

DANIELLE - Tácito.

6 - Tudo do Tácito.

5 - Tudo. E depois lemos...
 
6 - Santo Agostinho.

5 - Delfino, Meneghello y Capitini..

6 - Cícero, lemos e relemos.

5 - E Rousseau. E leibniz.

6 - Wittgenstein.


INTERIOR - DIA - BARCO

MORETTI - (V.O.) Caro Diário, passamos diante da ilha de Panarea. Gerard disse que nunca esteve lá, mas me indica um por um os locais, as discotecas, os restaurantes, as cervejarias. Decidimos que era melhor não descer em Panarea. Seguimos rumo a Stromboli, onde temos certeza que finalmente conseguiremos.

GERARD - De repente me lembrei de uns versos de Tibullo que descrevem a situação em que nos encontramos quando estamos assistindo à televisão. "Mas que lindo quando estamos mergulhados num leito / ouvindo os ventos impetuosos, batalhando entre eles" Eu em lembrei deles quando estava assistindo a um programa de variedades.


EXTERIOR - DIA - BARCO

[Gerard e Moretti estão brigando por causa de um papel que está com Gerard]

MORETTI - Me dá o papel, anda.

GERARD - Não.

MORETTI - (lendo) Não perder tempo.

MORETTI - (V.O.) Ao chegar a Stromboli, você sente a presença ameaçadora do vulcão. Gerard e eu começamos a brigar porque ele não me lembrou que estou aqui para trabalhar. Eu dei a ele todo um programa de coisas que eu deveria fazer, mas desde que estou aqui, eu não faço outra coisa a não ser perder tempo.


INTERIOR - DIA - PERTO DO MATO

[O Prefeito chega perto deles, cumprimentando-os]

PREFEITO- [a Gerard] Eu sou o prefeito, muito prazer, professor. [a Moretti] Bom dia.

MORETTI - Bom dia.

PREFEITO- Queremos que sejam nossos hóspedes.

GERARD - Não, obrigado, preferimos um hotel.

MORETTI - É.

PREFEITO- Um amigo tem a casa certa para vocês.


EXTERIOR - DIA - CALÇADA

[Os três de pé em frente a uma porta]

PREFEITO- Logo deve chegar do Japão o agrônomo responsável pelos 28 mil hectares que circundam Tóquio, quer falar comigo sobre os meus projetos.

MORETTI - Ah...

PREFEITO- (batendo na porta) Ricardo! (a Moretti e Gerard) Ele quer entender o segredo do nosso equilíbrio, principalmente o de Veneza. (bate à porta) Ricardo, sou eu. Escuta, já renunciei ao projeto da avenida com palmeiras importadas de LA. Queria restituir a essa ilha identidade, tradições que já estão perdidas. Praças, mar, jardins, as fontes, teatros... Ricardo! Abre que eles não têm onde dormir.

RICARDO- (V.O.) Chega!

PREFEITO- Desculpe. Eu tenho tantos projetos, mas todos eles acabam mal. São tão hostis aqui. Por que são tão hostis?


EXTERIOR - DIA - OUTRA CASA

[idem, mas agora a porta está aberta e um homem está escutando o prefeito.]

PREFEITO- Estou com dois amigos aqui que precisam se hospedar. Será que poderiam... [porta na cara. Fala a Moretti e Gerard] Mas é oposto de Amsterdam, onde se anda à noite como se passeássemos por quartos de visita, quartos de dormir, tudo iluminado, tudo visível. Uma vida sem cortinas.


EXTERIOR - DIA - OUTRA CASA

PREFEITO- Mas eu sou o prefeito, vocês não podem me tratar assim. Eles têm que se concentrar durante três ou quatro dias.

[Fecham-lhe a porta na cara]


EXTERIOR - DIA - CARRO

[Carro em movimento. O prefeito dirigindo. Os outros na carroceria.]

PREFEITO- Ah, eles não colaboram, não colaboram, não adianta nada. Deve ser a presença ameaçadora do vulcão, só pode ser. Material humano nós temos. Aqui em Stromboli existe uma mistura interessante de italianos e alemães, muito interessante. As famílias são numerosas, não é como em Salina, cujo crescimento é zero. Eu, por exemplo, tenho três filhos. Tanto potencial interessante desperdiçado. Que pecado!


INTERIOR - DIA - MATAGAL

[PG da montanha, deserta. Eles saem do carro]

PREFEITO- Bem, daqui só vão poder prosseguir a pé.

GERARD - Por esse caminho aí?

PREFEITO- Por esse caminho aqui, com passos regulares, sem esforço. Desculpem. Eu espero um telefonema do agrônomo japonês responsável pelos 28 mil hectares. [despedindo-se] Prazer em conhecê-los.

MORETTI - Prazer.

GERARD - Muito obrigado.

[Seguem. Moretti e Gerard andando. E o prefeito entra no carro.]


EXTERIOR - DIA - PERTO DO VULCÃO

[Moretti e Gerard estão sentados há uma distância segura, nalgum lugar da montanha, observando o vulcão.]

GERARD - Tem algo de hipnótico.

MORETTI - Hmm, hmm.

GERARD - Um antigo elo perdido. [avista um grupo ao longe] Não se vire, não se vire.

MORETTI - Que foi?

GERARD - Um grupo de americanos, não olhe, eu tenho vergonha. Eu quero saber se Sally Spector disse ao marido que está esperando um filho. A novela americana, nos EUA.

MORETTI - Sei.

GERARD - E também se a Stephanie descobriu alguma coisa sobre a nova mulher de seu ex-marido.

[Moretti desce até onde o grupo está, mas no meio do caminho ele grita a Gerard]

MORETTI - [aos berros] E A MARY, COM QUEM ELA É CASADA?

GERARD - COM THOR.

MORETTI - E A STEPHANIE, ONDE FOI QUE ELA COLOCOU OS MICROFONES?

GERARD - NA CASA DA ATUAL ESPOSA DE SEU EX-MARIDO.

MORETTI - E POR QUE?

GERARD - PORQUE ELA TEM CIÚÚÚÚMMMEEE.

MORETTI - [ao grupo] Hello, excuse, everybody. Could you tell me if Sally... (a Gerard) QUAL É O PROBLEMA DE SALLY SPECTOR?

GERARD - ELA ESTÁ ESPERANDO UM FILHO. O MARIDO DELA SABE OU NÃÃOOOO?

MORETTI - [ao grupo] If Sally Spector has told her husband if she's pregnant.

MULHER- Yes, she was. She told him.

MORETTI - Could you tell if Nancy...

MULHER- Nancy is madly love for her tennis teacher.

MORETTI - It's over, that's all over?

MULHER- Yes.

MORETTI - [a Gerard] NESSE MOMENTO, NANCY ESTÁ LOUCAMENTE APAIXONADA PELO SEU PROFESSOR DE TÊNIS, NÃO HÁ ESPERANÇA PARA THOORRRR.


INTERIOR - DIA - BARCO

[Homem esquisito dando adeus. Navio desatracando. Cena do vulcão. MORETTI E GERARD dentro do barco.]

MORETTI - Anda, vamos para Panarea.

GERARD - Vamos para Panarea.

[Barco atracando noutra ilha. Todos desembarcando. Uma mulher os recebe no porto.]

MULHER- Bem vindos! Com licença, de onde vêm?

MORETTI - Stromboli.

MULHER- Que tédio. Estou preparando uma linda festa em homenagem ao mau gosto. Levei quase um ano para organizá-la. Tamis Mettler anunciou que vem de cuecas. E depois, no sábado, haverá a festa de comemoração do meu divórcio.

GERARD - Organiza sempre coisas desse gênero?

MULHER- Minha empresa oferece de tudo. Coquetéis, jantares, viagens, decoração, posso encontrar um elefante branco para um jantar exótico ou um fotógrafo surpreendente para um casamento, um africano para animar uma festa. Idéias, criatividade, atmosferas, contatos...

AMBOS- [interrompendo-a] Até logo e obrigado.

[Correm em desespero de volta para o barco, que está zarpando.]