18.7.09

CARO DIÁRIO

Roteirizado, dirigido e protagonizado por Nanni Moretti.
Este é mais um dos meus dez filmes-texto favoritos. Aliás, não tanto um filme-texto, mas sim um filme-pausa, hehe...



CAPÍTULO UM
NA LAMBRETA

MORETTI escrevendo. Close em sua mão.

MORETTI - Caro diário, existe uma coisa que gosto de fazer mais que tudo. 

MORETTI em sua moto, circulando pelas ruas de Roma.

MORETTI - (off) No verão em Roma, os cinemas estão todos fechados ou passam filmes como ''Sexo, Amor e Pastoreio'' ''Desejos Bestiais'', ''Branca de Neve e os Sete Negros'' Ou filmes de terror como ''Pesadelo''. Ou, então, algum filme italiano. 

Vozes em off.

HOMEM - Tenho medo de retomar o jogo. Sou um covarde.  O que aconteceu nesses anos todos? Que houve comigo? Já não sei mais.

HOMEM #2 - Suas têmporas estão grisalhas.

Vemos dois homens e uma mulher falando.

HOMEM - É o peso das derrotas.

MULHER - Uma série ininterrupta de derrotas.

HOMEM - Nossa geração, no que se tornou? Hoje somos publicitários, arquitetos, corretores, deputados, assessores, jornalistas... Nós mudamos tanto! Sempre para pior. Hoje somos todos cúmplices. Mas por que tem que ser...

MORETTI resmunga, sentado numa sala de cinema.

MORETTI - Todos cúmplices.

MULHER - Não há nada de concreto na minha vida. Quando foi que saímos para passear? Acho que continuamos juntos só por hábito.

HOMEM - Todos se envergonham de mim. Que dor de cabeça! Até os analgésicos não são mais os mesmos. Lembra do barulho que faziam dentro dos vidros antigos? Agora tudo está mudado. Tudo está mudado.

MULHER - Sabe o que acontece, Antonio? Você piorou. Não tem mais nenhum sentimento autêntico.

HOMEM #2 - Ficamos velhos, amargos, não somos honestos no trabalho. Pregávamos coisas horrendas, violentíssimas, queríamos agir... e agora vejam como ficamos embrutecidos.

MORETTI nas ruas, em sua moto.

MORETTI (off) - Vocês gritavam coisas horrendas, violentíssimas... e ficaram embrutecidos. Eu gritava as coisas justas... e agora sou um esplendido quarentão.

MORETTI circulando novamente pela cidade. Dia ensolarado.

MORETTI - (off) A coisa que eu mais gosto na vida, é ver as casas, ver os bairros... e o meu bairro favorito é o Garbatella. Fico perambulando pelos bairros populares. Eu não gosto de ver as casas somente por fora... Às vezes gosto de olhar também como são por dentro. Então, eu toco a campainha e peço para fazer uma entrevista. Digo que trabalho na produção de um filme e o dono me pergunta. ''Do que fala esse filme?'' Eu não sei o que dizer.

MORETTI conversando com alguém.

MORETTI - Eu digo, ''Meu filme é a história de um confeiteiro trotskista... um confeiteiro trotskista na Itália dos anos 50. É um musical. Um musical.''

MORETTI em frente a um prédio.

MORETTI (off) - Nada mal, um musical sobre um confeiteiro trotskista na ltália conformista dos anos 50.

MORETTI contemplando outro prédio, ao lado de SILVIA.

MORETTI (off) - Quando ando de lambreta, gosto de parar para olhar as coberturas onde gostaria de morar. Me imagino reformando os apartamentos lá do alto. Apartamentos que os donos não têm a menor intenção de vender. Um dia vendo uma que parecia mais acessível que as outras eu e Silvia subimos para olhar. Perguntamos quanto custava e eles nos disseram, ''Dez milhões de liras o metro quadrado''. Dez milhões de liras o metro? ''Não se discute o preço do metro dessa rua, é uma rua histórica'', disse o proprietário. ''Foi aqui que Garibaldi fez a resistência.''

MORETTI em sua lambreta, percorrendo uma ponte.

MORETTI (off) - Não sei, não consigo compreender. Eu posso ser maluco, mas eu amo esta ponte. Tenho que passar por aqui pelo menos duas vezes ao dia.

MORETTI parado num cruzamento. Um homem num carro vermelho pára também, esperando o semáforo abrir. MORETTI aproxima-se dele.

MORETTI - Sabe no que estava pensando? Estava pensando em uma coisa muito triste, sabe que eu... mesmo em uma sociedade mais decente que esta... estarei sempre entre uma minoria de pessoas. Mas o caso é que não é como acontece nos filmes... em que o homem e a mulher se olham e brigam... numa ilha deserta porque o diretor não acredita nas pessoas. Eu acredito nas pessoas, mas não na maioria delas. Acho que sempre me entrosarei melhor com uma minoria.

HOMEM (desinteressado) - Tudo bem. Até logo.

HOMEM sai de cena, dirigindo. MORETTI permance em pé, surpreso.

MORETTI - Até logo.

MORETTI novamente em sua lambreta percorrendo ruas num dia ensolarado.

MORETTI (off) - Na verdade, meu sonho sempre foi saber dançar bem. ''Flashdance'' é o nome do filme que mudou definitivamente a minha vida. Era um filme apenas sobre dança. Saber dançar! Mas no fim eu acabo sempre só olhando. O que também é bom, mas é muito diferente. 

MORETTI chega a uma festa. Pára, desce de sua moto e observa os outros dançando. Pouco depois, vai cantar com uma banda. Depois disso, observa mais o movimento, sorrindo. Aproxima-se de um casal que estava conversando.

MORETTI - Sabe qual é o meu sonho? Meu sonho é e sempre foi saber dançar. Eu nunca mais fui o mesmo depois que vi... aquele filme ''Flashdance'' com Jennifer Beals. Aquela dançarina lá é a Jennifer Beals?

HOMEM - Não.

MORETTI - Puxa, como parece! Vocês viram o filme?

HOMEM - Não.

MORETTI se afasta e continua a observar os outros dançando.

Mais cenas de MORETTI percorrendo ruas.

MORETTI - (off) Spinaceto é um bairro construído recentemente. E todos falam mal dele. ''Aqui não é Spinaceto!'' ''Onde você mora?'' ''Spinaceto?'' Eu lembro que um dia, eu li uma história que se chamava... ''Fuga de Spinaceto''. Falava de um rapaz que fugia daquele bairro... fugia de casa, e nunca mais voltava. Então, vamos ver Spinaceto.

Pára sua moto próxima a um homem que está sentado sobre um muro.

MORETTI - Spinaceto? Esperava coisa pior, não é nada mal. Era exatamente o que eu estava pensando. Tchau.

HOMEM - Tchau.

MORETTI sai com sua moto.

MORETTI - Casalpalocco. Passando por essas casas, sinto cheiro de agasalhos... que substituem outras roupas. Um cheiro de vídeo-cassete... de cães de guarda nos jardins, pizzas prontas em caixas de papelão. Mas por que vieram para cá, há 30 anos?

MORETTI pára e fala com um homem que acaba de sair de um carro.

MORETTI - Desculpe, mas por que o senhor veio morar aqui em Casalpalocco?

HOMEM - Veja o verde, a tranqüilidade.

MORETTI - Sei o verde... mas deve ter vindo para cá há uns 30 anos, não é?

HOMEM - Em 1962.

MORETTI - Há 30 anos Roma era uma cidade belíssima.

HOMEM - Mas aqui é diferente.

MORETTI - É diferente agora... mas na época, Roma era uma cidade linda, entende? lsso me assusta, cães de guarda, vídeo-cassete, chinelos?

MORETTI percorrendo as ruas. Pára ao ver um casal andando. Fala à mulher.

MORETTI - Jennifer Beals? Jennifer Beals? Jennifer Beals? Jennifer Beals?

O casal finalmente pára e andar e responde.

JENNIFER - Sim.

MORETTI - De ''Flash Dance''?

JENNIFER - lsso.

HOMEM (em inglês) - Quem é ele?

JENNIFER - Eu não sei.

MORETTI - O que foi que ele disse?

JENNIFER - ''Quem é você''.

Enquanto MORETTI fala, ela vai traduzindo para o homem.

MORETTI - É que eu sempre quis muito saber dançar. Por exemplo, se eu morasse em Emilia-Romagna...  onde existem asilos, hospitais que funcionam... escolas de dança, tango, merengue, cha cha cha, mambo... e quando eu ouvisse música, eu pudesse dançar. E não só ficar olhando o pessoal dançar. Que sapatos! Como são cômodos! São simples, mas os pés devem ficar bem confortáveis, não é?

JENNIFER - Sim, são bem confortáveis. (ao homem) Acho que esse cara deve ser... Sabe, um maníaco por pés. Não, só vamos relaxar e...

MORETTI - Disse que sou louco?

JENNIFER - Não, não.

MORETTI - Não disse ''louco''?

JENNIFER - Eu disse, ''Off'.

MORETTI - O que é isso?

JENNIFER - Quer dizer especial, peculiar. Quase louco, mas não é bem isso. Acho que ''off' foi a melhor definição, não bem o que eu queria dizer mas...

HOMEM - Sei, como ''fora do normal''?

JENNIFER - Sim, porém, algo mais preciso. Algo mais preciso, talvez ''whimsical''.

MORETTI - ''Whimsical''?

JENNIFER - É quase bobo. Bobo.

MORETTI em sua lambreta, olhando mais prédios.

MORETTI (off) - Mesmo quando vou a outras cidades... a única coisa que gosto de fazer é olhar as casas. Como seria lindo um filme feito só com casas. Panorâmica de casas. Garbatella, 1927. Vila Olímpica, 1960. Tufello, 1960. Vigne Nuove, 1987. Monte Verde, 1939.

MORETTI em frente a uma sala de cinema. O filme, anunciado numa placa grande: "HENRY CHUVA DE SANGUE". MORETTI entra na sala.

Na tela, um homem grita aoutros dois.

HOMEM #1 - Foi o combinado, pegue os 50 dólares e vão para o inferno!

Um dos outros enfia uma faca na mão do que primeiro falou.

HOMEM #2 - Vou te pagar. Vou te pagar direitinho.

Começa uma luta entre os dois. MORETTI sentado, um pouco assustado. Enquanto ouve-se os gritos dos homens lutando, MORETTI faz umas caretas. Na tela, um dos homens quebra um monitor na cabeça do HOMEM #1. Ainda no filme: Ext. Noite um carro estaciona.  O homem que sai do carro fala a outro. "Estão precisando de ajuda? Precisa de ajuda ou pode se virar sozinho?"

MORETTI saindo do cinema, desencantado e senta-se num banco.

MORETTI (off) - Durante horas eu ando pela cidade... tentando me lembrar quem me falou bem desse filme. Eu tinha lido uma crítica no jornal, alguma coisa positiva sobre Henry. De repente, me lembrei. (MORETTI sentado a um amesa, Ext. - Sol) Encontro o artigo e o copio no meu diário. Aqui está. ''Henry mata pessoas, mas é quase um homem bom... de poucas palavras, mas só os fatos contam. Mas seu amigo Otis é um crápula. Henry tem uma louca solidariedade com suas vítimas. É um príncipe de sangue azul da aniquilação... prometendo uma morte piedosa. Otis, não. O diretor acorda o público para um pesadelo ainda pior... com uma ducha final de sangue, olhos perfurados... Carne torturada. A abominação. Henry é o primeiro a desmembrar com grande lucidez... a filosofia criminal lambrosiana de Hollywood.'' Eu fico pensando, será que quem escreve essas coisas... quando chega a noite, antes de adormecer... tem um momento de remorso?

INT. DORMITÓRIO

Homem deitado numa cama, chorando em desespero crescente. MORETTI sentado a seu lado, numa cadeira.

MORETTI - Quando começou? Quando tudo isso começou?

HOMEM - Não sei.

MORETTI - Talvez quando tenha escrito... (lendo) ''Esse filme coreano é um melodrama De época com roupas... e sobretudo chapéus delirantes, feminista, flamejante, demoníaco... filmado como se fosse um Spielberg, em ritmo e espaço futuristas.'' Tem também ''O Pasto Nu'' de Cronenberg. ''Um puro underground de custo elevado. Um verdadeiro filme cult. Não que as mulheres, para Jonathan Demme, sejam melhores... ou que equivalham ao que para Lin Piao eram os proletários... e sub-proletários dos três mundos juntos. Só que suas mulheres têm fibra para manter a parte justa... na guerra do imaginário feita nas aulas de ''lntervenções Cirúrgicas''. De fato, antes que Lula e Sailor se abracem em um final feliz... sussurrando ''Love me tender'', ainda que faltem muitos anos de cadeia... para Sailor, cabeças humanas dilaceradas voarão. Vira-latas pegarão mãos decepadas e fumarão centenas de cigarros... de todos os tipos. Longos, suaves e mentolados.''

Ext. Dia. MORETTI lendo os jornais. Manchetes: "A MORTE DE PASOLlNl" "O MEU lNFERNO" "Pasolini estava vivo quando o carro o atropelou várias vezes." "Pasolini foi assassinado por um garoto de programa."

MORETTI percorrendo mais ruas em sua lambreta.

MORETTI (off) - Não sei porque, mas nunca estive no local onde mataram Pasolini.

CAPÍTULO 2
ILHAS

MORETTI num barco, mexendo em uns papéis.

MORETTI (off) - O barco está chegando a Lipari. Vou visitar um amigo que se mudou para lá há 11 anos. Desde então, estuda apenas ''Ulisses'' de Joyce. Eu estou começando a escrever meu filme... e trouxe comigo todos os recortes que vou precisar para o trabalho... e que guardei nos últimos anos. Tenho certeza de que em Lipari farei alguma coisa.

EX. DIA RUAS

MORETTI e GERARD andando por ruas engarrafadas. 

INT. DIA PADARIA

MORETTI observando o balcão.

ATENDENTE - Bom dia.

MORETTI - Bom dia. Um suco de laranja e... um sanduíche...

ATENDENTE - Já vou atendê-lo.

MORETTI - De mussarela.

MORETTI observa na televisão, a imagem de uma freira.

FREIRA (off) Deus, dê-me forças.

MORETTI - Um sanduíche de mussarela com tomate, obrigado.

Começa a passar um show de dança. MORETTI se empolga e começa a dançar.


EXTERIOR - DIA

MORETTI e GERARD sentados a uma mesa, bebendo.

GERARD - O que você estava assistindo?

MORETTI - Quando?

GERARD - Lá dentro, na televisão.

MORETTI - Não, não era a televisão, não. Era um filme estranho. Silvana Margano antes era freira, depois no meio, ela dança. Você deve ter achado também.

GERARD - Nunca.

MORETTI - Nunca assiste televisão?

GERARD - Nunca. Há trinta anos que eu não vejo televisão. Sabe o que Magnus Enzensberger disse? Eu concordo com ele.


EXTERIOR - DIA - RUA CONGESTIONADA

Muitas buzinadas, muitas pessoas.

MORETTI - Pode não acreditar, mas é a primeira vez em tantos anos que estou aqui que está essa confusão. Não acredita.

GERARD - Acredito.


INTERIOR - DIA - SALA CASA GERARD

[Moretti e Gerard estão sentados, cada um a uma escrivaninha, mexendo nuns papéis.]

GERARD - Os recortes são de notícias engraçadas, curiosas?

MORETTI - Curiosas. Pois é, no decorrer dos anos eu só acumulei notícias e artigos bobos, personagens desagradáveis e evidentemente, é... (barulho de buzinas) Sou atraído por essas coisas.

MORETTI levanta-se  e vai até a janela.


EXTERIOR - DIA - NAVIO

[Ambos num navio]

MORETTI - (V.O.) Havia muito barulho, muita confusão em Lipari. Decidimos então partir para Salina, uma ilha mais tranqüila, familiar. Lá existem uns amigos de Gerard que têm filhos. Aliás, um filho. Parece que em Salina todos têm só um filho. Parece que lá conseguiremos fazer alguma coisa.

Parte 2

INT. SALA DE ESPERA

MORETTI e GERARD estão cada um lendo algo,s entados, concentrados. A televisão está ligada.

MULHER (off) Não precisa fazer isso, não é necessário. Não está sendo gentil considerando que estou trazendo seu presente de casamento.

OUTRA MULHER (off) É mesmo? Quanta gentileza!

GERARD muda de lugar várias vezes, aproximando-se cada vez mais do televisor.

HOMEM (off) Olha quem está aqui. Não vai fechar o cassino.

MULHER (off) - Por que diz isso?

HOMEM (off) - Vou lhe dizer... porque odeio profundamente pessoas como você. Ilude as pessoas alimentando falsas esperanças. E quando consegue o que quer, joga-as no lixo. 

HOMEM #2 (off) Vá para casa e acalme-se.

HOMEM (off, entrando) - Vou lhe dizer, essa Catedral jamais verá a luz do dia. Pelo menos enquanto eu viver.

MULHER (off) - Oi.

HOMEM (off) - Oi.

MULHER (off) - Que bom que voltou.

HOMEM (off) - Por quê?

MULHER (off) - Preciso lhe dizer uma coisa.

HOMEM (off) - Espero que seja uma boa notícia.

MULHER (off) - Não acho que será uma boa notícia. Encontrei a Gina hoje, e ela disse que Keith quer se vingar de você. A qualquer preço.

HOMEM (off) - Isso não é novidade.

MULHER (off) - Há algum tempo ele me disse a mesma coisa. 


INTERIOR - NOITE - SALA DE ESTAR CASA 3 e 4

[Moretti, Gerard, 3 e 4 estão sentados no sofá, de frente para a TV, que está num volume baixíssimo.]

3- É incrível que para Pedro esses primeiros anos não significarão nada, porque não vai saber de mais nada. Não poderá lembrar-se deste período de tanta intimidade, aproximação, quando precisou tanto de mim.

4- Esta semana aconteceu uma coisa muito importante: ele largou a fralda. Pensamos em tirar umas duas semanas de férias para fazê-lo aprender. E... Ao invés disso ele ficou muito esperto, muito...

3- [interrompendo-o] Ao invés disso ele aprendeu tudo sozinho e não errou nada, começou a comportar-se como uma pessoa adulta.


INTERIOR - DIA - SALA DE JANTAR CASA 3 E 4

[Todos sentados à mesa, exceto 4. 3 continua a tagarelar, numa quase continuação da cena anterior.]

3- E o primeiro dia de creche. Ficamos acordados a noite toda, estávamos preocupadíssimos, agitados...

MORETTI - A agitação do primeiro dia de escola.

3- É, a agitação do primeiro dia de escola, é... Pedro estava dormindo, tranqüilo, nem podia imaginar que no dia seguinte sua vida mudaria. (a 4, que entra) Está dormindo? (4 responde com um sutil gesto de cabeça. 3 continua) Pedro está atravessando uma fase complicada, apesar de transitória. Passou de um regime em que lidava somente conosco para um regime de creche, diferente...

(Gerard tenta aumentar o volume da TV, ao que é impedido pela vaca 3. Gerard, sem alternativa, leva a mão ao ouvido enquanto chega mais para perto da TV, de uma forma hilária)

3- Não, ele está dormindo. O volume está bom. Pôde ver tantas crianças, tantas pessoas...


EXTERIOR - DIA - LOCAL

[Gerard, Moretti, 5, 6 e Danielle andando bem mais rápido que eles, a fim de fugir.]

5- Danielle, Danielle!

GERARD - Ontem assisti a televisão, foi um programa bom mesmo. Mas eu não entendi.

MORETTI - Aquela família.

6- Vocês se assustaram.

MORETTI - Sim, um pouco, mas...

5- Ah, eles exageraram com Pedro e nós, com Danielle. Temos um relacionamento diferente. Queríamos ter outros filhos, mas temos muito medo que Danielle receba mal.

6 - Perguntamos a ele a cada dois ou três anos: "Danielle, quer uma irmãzinha ou irmãozinho?" Ele fica danado. Tenho medo. Temos medo.


EXTERIOR - DIA - RUA

[Moretti no orelhão.]

MORETTI - Ihh, ohh, o burrinho faz ihh ohhh. Ah, você sabe, mas eu não sei fazer o som de outros animais.


EXTERIOR - DIA - LOCAL

[Moretti escrevendo num bloco de anotações]

MORETTI - (V.O.) Há anos que Salina estava dominada por filhos únicos. Cada família tinha um filho e somente um, a quem era confiado o comando da situação. Era praticamente impossível a comunicação por telefone porque nas casas os aparelhos eram sempre interpelados pelas crianças...


EXTERIOR - DIA - RUA/ TELEFONES PÚBLICOS

Todos os seguintes personagens estão no orelhão. As crianças, cenário sala de estar.

[moça ao telefone] Oi, é a Rosana. O papai ou a mamãe estão?

[criança] Eu vou passar para o papai, tchau. [bate o telefone no gancho]

[mulher] Paolo?

[homem] Giovani?

[outro homem] Sabe quem sou eu? Como eu me chamo?

[criança] Pronto, quem fala? Aqui é o Paolo.

[Moretti] Como se chama? Quantos anos tem? Me conhece? Como eu me chamo?

[Paolo] Como faz o porquinho?

[homem] Como faz o hipopótamo?

[Moretti] A girafa eu não sei; ihhh é o porquinho. O rouxinol eu não sei.

[mulher] A mamãe ou o papai estão?

[Paolo] A mamãe e o papai estão em casa, mas agora eu vou te contar uma estória. Era uma vez...

[mulher, pausadamente] Você está entendendo o que eu estou dizendo?

[bebê. Silêncio. Três orelhões ocupados pó uns malucos implorando que as crianças chamem seus pais.]

[mulher] Chame a mamãe.

[homem] Eu não sei imitar isso.

[Moretti] Conta para ele como faz o porquinho óinc óinc.


EXTERIOR - DIA - LOCAL

[Moretti encontra uma bola perto da areia e começa a chutar. B.G.: melancólico.]


INTERIOR - DIA - DORMITÓRIO CASA 5 e 6

[Escuridão. Casal 5 e 6 entra no quarto, acendem os abajures e acordam Moretti e Gerard, tirando-lhes os cobertores.]

5- Acorda, acorda.

MORETTI - [cobrindo o rosto] A luz, a luz!

6- Já acordamos o Danielle, ele está esperando.

5- Há quinze minutos.

MORETTI - Pra que?

5- Porque essa é a pior hora do dia.

MORETTI - Por que?

5- Porque faltam quinze para as três.

MORETTI - Por que?

GERARD - Como assim por que? É a hora do lobo.

5- A hora do lobo é a pior hora, é a hora em que se está mais sozinho. Por favor, acorda.

6- Há doze anos que acordamos o Danielle às três horas e o levamos para a nossa cama. Então, vem com a gente?


INTERIOR - NOITE - SUÍTE CASAL

[5, 6, Moretti e Gerard entram no quarto em que Danielle - Dan. - os espera, no centro da cama, sonolento. Seus pais lhe perguntam]

5- Como está esta noite?

DAN.- Bem.

5- Está com medo?

[todos se acomodam na cama. Gerard e Moretti voltam a dormir.]

DAN.- Não.

5- Viu quantas pessoas vieram te fazer companhia?

DAN.- Vi.

6- Não está com medo, está?

DAN.- Ah, estou sim.

5- O Danielle nunca teve uma babá. 

MORETTI - Não? Por que?

5- Porque sempre ficamos com ele.

MORETTI - Nunca saíram?

6- Nunca. Lemos sempre alguma coisa.

5 - Lemos Von Kleist.

6 - Hegel.

5 - Spinoza.

6 - Lemos Frederico Totsi.

5 - Lemos Xenofonte, lemos tudo dele e depois Heródoto.

6 - E depois?

DANIELLE - Tácito.

6 - Tudo do Tácito.

5 - Tudo. E depois lemos...
 
6 - Santo Agostinho.

5 - Delfino, Meneghello y Capitini..

6 - Cícero, lemos e relemos.

5 - E Rousseau. E leibniz.

6 - Wittgenstein.


INTERIOR - DIA - BARCO

MORETTI - (V.O.) Caro Diário, passamos diante da ilha de Panarea. Gerard disse que nunca esteve lá, mas me indica um por um os locais, as discotecas, os restaurantes, as cervejarias. Decidimos que era melhor não descer em Panarea. Seguimos rumo a Stromboli, onde temos certeza que finalmente conseguiremos.

GERARD - De repente me lembrei de uns versos de Tibullo que descrevem a situação em que nos encontramos quando estamos assistindo à televisão. "Mas que lindo quando estamos mergulhados num leito / ouvindo os ventos impetuosos, batalhando entre eles" Eu em lembrei deles quando estava assistindo a um programa de variedades.


EXTERIOR - DIA - BARCO

[Gerard e Moretti estão brigando por causa de um papel que está com Gerard]

MORETTI - Me dá o papel, anda.

GERARD - Não.

MORETTI - (lendo) Não perder tempo.

MORETTI - (V.O.) Ao chegar a Stromboli, você sente a presença ameaçadora do vulcão. Gerard e eu começamos a brigar porque ele não me lembrou que estou aqui para trabalhar. Eu dei a ele todo um programa de coisas que eu deveria fazer, mas desde que estou aqui, eu não faço outra coisa a não ser perder tempo.


INTERIOR - DIA - PERTO DO MATO

[O Prefeito chega perto deles, cumprimentando-os]

PREFEITO- [a Gerard] Eu sou o prefeito, muito prazer, professor. [a Moretti] Bom dia.

MORETTI - Bom dia.

PREFEITO- Queremos que sejam nossos hóspedes.

GERARD - Não, obrigado, preferimos um hotel.

MORETTI - É.

PREFEITO- Um amigo tem a casa certa para vocês.


EXTERIOR - DIA - CALÇADA

[Os três de pé em frente a uma porta]

PREFEITO- Logo deve chegar do Japão o agrônomo responsável pelos 28 mil hectares que circundam Tóquio, quer falar comigo sobre os meus projetos.

MORETTI - Ah...

PREFEITO- (batendo na porta) Ricardo! (a Moretti e Gerard) Ele quer entender o segredo do nosso equilíbrio, principalmente o de Veneza. (bate à porta) Ricardo, sou eu. Escuta, já renunciei ao projeto da avenida com palmeiras importadas de LA. Queria restituir a essa ilha identidade, tradições que já estão perdidas. Praças, mar, jardins, as fontes, teatros... Ricardo! Abre que eles não têm onde dormir.

RICARDO- (V.O.) Chega!

PREFEITO- Desculpe. Eu tenho tantos projetos, mas todos eles acabam mal. São tão hostis aqui. Por que são tão hostis?


EXTERIOR - DIA - OUTRA CASA

[idem, mas agora a porta está aberta e um homem está escutando o prefeito.]

PREFEITO- Estou com dois amigos aqui que precisam se hospedar. Será que poderiam... [porta na cara. Fala a Moretti e Gerard] Mas é oposto de Amsterdam, onde se anda à noite como se passeássemos por quartos de visita, quartos de dormir, tudo iluminado, tudo visível. Uma vida sem cortinas.


EXTERIOR - DIA - OUTRA CASA

PREFEITO- Mas eu sou o prefeito, vocês não podem me tratar assim. Eles têm que se concentrar durante três ou quatro dias.

[Fecham-lhe a porta na cara]


EXTERIOR - DIA - CARRO

[Carro em movimento. O prefeito dirigindo. Os outros na carroceria.]

PREFEITO- Ah, eles não colaboram, não colaboram, não adianta nada. Deve ser a presença ameaçadora do vulcão, só pode ser. Material humano nós temos. Aqui em Stromboli existe uma mistura interessante de italianos e alemães, muito interessante. As famílias são numerosas, não é como em Salina, cujo crescimento é zero. Eu, por exemplo, tenho três filhos. Tanto potencial interessante desperdiçado. Que pecado!


INTERIOR - DIA - MATAGAL

[PG da montanha, deserta. Eles saem do carro]

PREFEITO- Bem, daqui só vão poder prosseguir a pé.

GERARD - Por esse caminho aí?

PREFEITO- Por esse caminho aqui, com passos regulares, sem esforço. Desculpem. Eu espero um telefonema do agrônomo japonês responsável pelos 28 mil hectares. [despedindo-se] Prazer em conhecê-los.

MORETTI - Prazer.

GERARD - Muito obrigado.

[Seguem. Moretti e Gerard andando. E o prefeito entra no carro.]


EXTERIOR - DIA - PERTO DO VULCÃO

[Moretti e Gerard estão sentados há uma distância segura, nalgum lugar da montanha, observando o vulcão.]

GERARD - Tem algo de hipnótico.

MORETTI - Hmm, hmm.

GERARD - Um antigo elo perdido. [avista um grupo ao longe] Não se vire, não se vire.

MORETTI - Que foi?

GERARD - Um grupo de americanos, não olhe, eu tenho vergonha. Eu quero saber se Sally Spector disse ao marido que está esperando um filho. A novela americana, nos EUA.

MORETTI - Sei.

GERARD - E também se a Stephanie descobriu alguma coisa sobre a nova mulher de seu ex-marido.

[Moretti desce até onde o grupo está, mas no meio do caminho ele grita a Gerard]

MORETTI - [aos berros] E A MARY, COM QUEM ELA É CASADA?

GERARD - COM THOR.

MORETTI - E A STEPHANIE, ONDE FOI QUE ELA COLOCOU OS MICROFONES?

GERARD - NA CASA DA ATUAL ESPOSA DE SEU EX-MARIDO.

MORETTI - E POR QUE?

GERARD - PORQUE ELA TEM CIÚÚÚÚMMMEEE.

MORETTI - [ao grupo] Hello, excuse, everybody. Could you tell me if Sally... (a Gerard) QUAL É O PROBLEMA DE SALLY SPECTOR?

GERARD - ELA ESTÁ ESPERANDO UM FILHO. O MARIDO DELA SABE OU NÃÃOOOO?

MORETTI - [ao grupo] If Sally Spector has told her husband if she's pregnant.

MULHER- Yes, she was. She told him.

MORETTI - Could you tell if Nancy...

MULHER- Nancy is madly love for her tennis teacher.

MORETTI - It's over, that's all over?

MULHER- Yes.

MORETTI - [a Gerard] NESSE MOMENTO, NANCY ESTÁ LOUCAMENTE APAIXONADA PELO SEU PROFESSOR DE TÊNIS, NÃO HÁ ESPERANÇA PARA THOORRRR.


INTERIOR - DIA - BARCO

[Homem esquisito dando adeus. Navio desatracando. Cena do vulcão. MORETTI E GERARD dentro do barco.]

MORETTI - Anda, vamos para Panarea.

GERARD - Vamos para Panarea.

[Barco atracando noutra ilha. Todos desembarcando. Uma mulher os recebe no porto.]

MULHER- Bem vindos! Com licença, de onde vêm?

MORETTI - Stromboli.

MULHER- Que tédio. Estou preparando uma linda festa em homenagem ao mau gosto. Levei quase um ano para organizá-la. Tamis Mettler anunciou que vem de cuecas. E depois, no sábado, haverá a festa de comemoração do meu divórcio.

GERARD - Organiza sempre coisas desse gênero?

MULHER- Minha empresa oferece de tudo. Coquetéis, jantares, viagens, decoração, posso encontrar um elefante branco para um jantar exótico ou um fotógrafo surpreendente para um casamento, um africano para animar uma festa. Idéias, criatividade, atmosferas, contatos...

AMBOS- [interrompendo-a] Até logo e obrigado.

[Correm em desespero de volta para o barco, que está zarpando.]

Parte 3


INTERIOR - DIA - BARCO

[Moretti dormindo]

MORETTI - (V.O.) Caro diário, eu sou feliz somente no trajeto entre uma ilha que eu acabo de deixar e a outra para onde estou indo. Estamos indo para Alicudi, é a ilha mais distante, mais selvagem.


EXTERIOR - DIA - BARCO

[Gerard está deitado numa cadeira de praia, conversando com uma mulher]

GERARD - Com toda certeza a senhora é contrária ao programa "Quem o viu?".

[Ela faz um sinal de mais ou menos com a mão]

GERARD - Podemos negar a Ulisses o direito de após a Guerra de Tróia, perambular pelo mundo, parando para ver Cícero, Calipso ou Nazica? Claro que não. Do contrário, não teríamos a "Odisséia". Mas não podemos negar à família dele o sagrado direito de procurá-lo. É Lêmaco percorrendo as ilhas gregas, atrás de notícias do pai. E a pergunta é: Quem o viu?


INTERIOR - DIA - MONTANHA

[MORETTI E GERARD andando num caminho deserto. 8 chega perto deles.]

MORETTI - Bom dia.

8- Não há salvação para a Itália. Ele está esperando vocês.

MORETTI - Ele quem?

8- O homem que recusou o sucesso. Ele odeia o narcisismo. Todos aqui odiamos o narcisismo. Esta ilha só recebe quem pensa como ela.


INTERIOR - DIA - MONTANHA

[MORETTI, GERARD E 8, subindo a montanha]

8- Aqui encontramos energia para trabalhar. E Alicudi dá mais que todas as ilhas.

MORETTI - Eu sei, já me disseram.

GERARD - [quase sem fôlego] Falta muito?

8- Um pouco.

MORETTI - Não há outras estradas?

8- Não há outras estradas aqui.

GERARD - Não há nenhuma estrada. E essa pessoa que nos espera...

8- Escreveu um livro de sucesso há alguns anos. Sucesso demais.

MORETTI - Sucesso demais?

8- Veio para cá para espiar o demasiado sucesso. Licuchi é a melhor ilha de todas.

MORETTI - Já sei.

8- Não gosto das outras ilhas, são todas corruptas. Não sabem viver sozinhas.

MORETTI - Entendi.

8- Aqui todos vivemos sozinhos.


INTERIOR - NOITE - DORMITÓRIO

[Moretti e Gerard estão cada um numa cama, se preparando para dormir.]

GERARD - Enzensberger diz que a televisão não é nada.

MORETTI - É.

GERARD - Está bem, mas me prove que aquele jogo que vimos no outro dia, com Honduras x Bélgica de três a dois, com 5 faltas cobradas, equivale a nada.

MORETTI - É.

GERARD - Para mim, aquele nada pareceu tanto. Para você também.

MORETTI - É, está certo, para mim também.

GERARD - Aquele pênalti no último minuto.

MORETTI - Desculpe, mas eu tenho que resolver um probleminha. Não há persianas e só sei que amanhã vou acordar bem cedinho e só consigo dormir na escuridão total.

GERARD - Sim, eu admito.

MORETTI - O que?

GERARD - Nesses dias eu exagerei um pouco com a televisão.

MORETTI - Tudo bem.

GERARD - Mas agora isso já passou.

MORETTI - Pois é, estamos aqui tranqüilos, né?

GERARD - Ah, esta ilha...


INTERIOR - DIA - COZINHA CASA HOMEM QUE RECUSOU O SUCESSO

[Homem sentado à mesa, papando um pedaço de queijo. Moretti surge.]

MORETTI - Ah, está aqui.

9- Eu nunca saio porque os homens são assustadores.

MORETTI - Sabe, é que, com a claridade eu não consigo dormir, como não há persianas. Você tem uma fita adesiva aí?

9- [apontando] Dá uma olhada ali.

MORETTI - Eu queria pegar... Tem um papelão?

[Moretti senta-se]

9- Claro. Quero viver aqui sem raízes. Nossas raízes são pesadas demais. Nesses anos todos tive vergonha da Itália e de sua gente. Sinto vergonha pelas outras ilhas. Tão ávidas, tão ignorantes, onde mora gente que não se sente culpada. Nós ficamos aqui em retiro para pensar nos outros. Os italianos são um dos povos mais condicionados e vulgares do mundo. Este país tem uma vontade desenfreada de rir. Que motivo há para rir?

MORETTI - Se importa se eu pegar a...

9- Não, pega.


EXTERIOR - DIA - VARANDA

[Gerard está sentado, escrevendo algo. Moretti está escrevendo no diário]

MORETTI - (V.O.) Estamos em Licuchi há vários dias. É realmente uma ilha diferente das outras, onde finalmente conseguimos nos concentrar. Aqui há muita calma. Uma calma terrível.

8- Estão trabalhando?

MORETTI - É. Agora estou escrevendo em meu diário, mas esses dias eu...

GERARD - Estou escrevendo uma carta ao papa... Porque ele excomungou as telenovelas. Disse que são um perigo para a união da família. Eu vou ler. "Caro Santo Padre, perdoe-me, mas está errado. Nossas famílias estão muito fechadas em seu egoísmo, mas graças às telenovelas, exprimimos curiosidade, interesse por outras famílias distantes com as quais compartilhamos igualmente os dramas, problemas e alegrias. [agora, sem ler] "Inês, Uma Secretária", 0h30/ "Veredas", 2h50/ "Quando se ama", 4h/ "Santa Bárbara", mesmo horário, mas outro canal. "Celeste", 6h25/ "Beautiful", 9h. Não assisto televisão há dias, mas não sinto a menor falta.

8- Bom, porque nesta iha...

GERARD - [ansioso] Nesta ilha...

8- Não tem eletricidade.

GERARD - E então...?

8- Não há aparelhos de TV em Licurti.


INTERIOR - DIA - LOCAL

[Gerard correndo em desespero, descendo a montanha em direção ao barco que já está zarpando, gritando a plenos pulmões]

GERARD - TE-LE-VI-SÃÃÃOOOO! TV! ELEVADOR! TELEFONE! ÁGUA QUENTE! ESPEREEMM! TELEVISÃO... SIM, TELEVISÃO... PAREM! AH, O SENHOR MAGNUS ENZENSBERGER ME DÁ PENA QUANDO DIZ QUE A TELEVISÃO TRANSMITE O NADA. AH, ENZENSBERGER, VOCÊ ESTÁ ENGANADO. A TELEVISÃO NÃO É UM MONSTRO QUE CORROMPE AS CRIANÇAS, PELO CONTRÁRIO. SÃO AS CRIANÇAS QUE SE BESTIALIZAM ASSISTINDO A TELEVISÃO, MAS CHORAM, SONHAM DE OLHOS ABERTOS, COMO NOS VELHOS TEMPOS SONHARAM OUVINDO AS FÁBULAS E LENDAS...

[Gerard consegue finalmente embarcar.]


INTERIOR - DIA - SALA ESTAR CASA MORETTI

[folha de papel onde se vê escrito: "CAPÍTULO III - MÉDICOS". Moretti está sentado à sua escrivaninha, olhando uns papéis.]

MORETTI - (V.O.) Caro diário, guardei todas as receitas médicas acumuladas durante um ano e guardei também as anotações que eu fazia após cada consulta, portanto, nada neste capitulo é inventado. Receitas de farmácias, consultórios médicos e as conversas com eles.


INTERIOR - DIA - CASA MORETTI

[Moretti ao telefone]

MORETTI - Sei, sei... Usar meia em casa. Tá bom, tchau. A uma e meia em casa, é claro que eu posso.


INTERIOR - DIA - HOSPITAL

[Moretti deitado perto da máquina de quimioterapia, sendo preparado por duas mulheres]

MORETTI - (V.O.) Esta é minha última sessão de quimioterapia, tratamento que se faz quando se tem um tumor, e decidi filmá-la.

[mulher colocando uma faixa em sua testa]

MULHER- Vá devagar, hein?

MORETTI - Sim, está bom. É.

MULHER- Está muito baixo.

MORETTI - Cuidado com a orelha.

MULHER- Está bem apertado.

MORETTI - Está bom, está bom.

MULHER- Está pronto?

MORETTI - Tô.

[pausa]

MULHER- Abaixa mais.

MORETTI - Ahn?

A doutora está aí?

O quê?

Tem denticene?

É melhor não saber. Está coçando?

Um pouco, mas dá para aguentar. Mas não desapareçam daqui.

MORETTI - (V.O.) A coceira continua, mas graças à recomendação de um amigo, finalmente consegui marcar uma consulta com o príncipe dos dermatologistas, nos últimos dias antes de tirar férias.


INT. DIA CONSULTÓRIO

MORETTI e o MÉDICO.

MÉDICO (lendo) "Giovanni Moretti, nascido em Brunico em 19 de agosto de 1953... mora em Roma. O senhor já foi tratado por esta doença aqui?

Não, é a primeira vez.

MÉDICO -O que você tem?

MORETTI -Uma coceira muito forte.

MÉDICO -Há quanto tempo?

MORETTI - Várias semanas, há quase um mês.

MÉDICO -Onde?

MORETTI - Nos pés e nos braços.

MÉDICO -Quando é pior?

MORETTI -Principalmente à noite.


OUTRA SALA. INT. DIA

Moretti deitado. O doutor o examina.

MÉDICO - A pele está um pouco seca. Vejamos aqui. Abaixe mais.

MORETTI -Pensei que fosse sarna.

MÉDICO - Não, é uma doença que afeta outras classes sociais. Há uma reação. Já teve hepatite?

MORETTI -Já, há muito tempo.

MÉDICO  -Outras doenças importantes?

MORETTI - Não.

MÉDICO -Fome?

MORETTI - -Como assim?

MÉDICO -Tem apetite?

MORETTI -Tenho, tenho.

MÉDICO - Deve ir a um lugar quente, como a praia. O frio resseca muito a pele, e piora esses sintomas. Tome um comprimido de histamina uma hora antes do jantar. Um de Flantadin por uma semana. E meio comprimido na segunda semana.


INT. NOITE CASA DE MORETTI

Moretti deitado em sua cama, se coçando.

MORETTI (off) - Tenho tomado os remédios que o médico me receitou... mas a coceira não passa. Voltei ao mesmo instituto... mas o médico que me atendeu a primeira vez, não está lá. Então, outro médico me examina.

OUTRO MÉDICO - Está com a pele muito seca, mal nutrida.

-Eu sei.

OUTRO MÉDICO - O sr. por acaso tem uma moeda?

MORETTI -Uma moeda?

OUTRO MÉDICO - Uma qualquer.

O médico passa a moeda pela pele de Moretti.

OUTRO MÉDICO - Cuidado com as verrugas.

MORETTI -Sim, senhor.

OUTRO MÉDICO - Obrigado. Há um dermografismo muito evidente. Creio que se trata de uma alergia de caráter alimentar. Pode vestir-se. Pode ser também um problema de fundo nervoso, stress, talvez. Com a vida que levamos, que o senhor leva, sr. Moretti.

Moretti veste  a camisa.

MORETTI - É. Aqui está a receita que o seu colega me deu. -Histamina, devo continuar?

OUTRO MÉDICO - Não. Deve fazer alguns exames de sangue. Hemograma completo.  Eu vou fazer o pedido. Deve tomar Fristamim, um comprimido por dia, durante um mês. Prazene em gotas.


MORETTI em sua casa, vendo os resultados dos exames.

MORETTI Deixe-me ver, hematócrito 46%... taxa de hemoglobina 16,3, glóbulos vermelhos normal. Faço os exames de sangue e os resultados são normais. Mas a coceira continua. Não só continua, aumenta. Me lembro, que em Roma falam muito de um dermatologista famoso. Uma espécie de príncipe dos dermatologistas. Então, eu telefono para o consultório do príncipe. (ao telefone) Bom dia, por gentileza, eu gostaria de marcar uma hora... (ouve) Como não é possível antes de três meses? Mas é um caso urgente, senhorita! Estou com muita coceira. Quem é o substituto? Assistente do professor? Os pacientes excedentes são sempre mandados para ele. Pode me dar o número de telefone? 32... (anota) Obrigado, até logo. (desliga)

Parte 4


INT. DIA. Moretti e outro médico (#3), em outro consultório.

MÉDICO #3 - Você está atravessando um período especial de stress?

MORETTI -Sim, mas por causa da coceira.

MÉDICO #3 - Bebe muito café ou chá?

MORETTI - Tomo muito chá.

MÉDICO #3 - Deve tomar, no máximo, um chá, um café ou um refrigerante por dia.

MORETTI - Entendi. Bom, estes são os remédios que os outros médicos passaram.

MÉDICO #3 - Ah, sim, os conheço. São colegas muito bons. Mas vou receitar outra coisa. Anfo-3 para o banho. Depois do banho Hidroskin. E, depois, lnfloran. -Um comprimido a cada manhã.

MORETTI -Sei.

MÉDICO #3 - Em jejum. Depois Atarax.

Moretti levanta-se e sai enquanto o médico continua falando e escrevendo a receita.

MORETTI (off) - Eu gosto muito de tomar remédios. E acreditar que me fazem bem. Mas o substituto estava muito confuso. Nem com a maior boa vontade eu conseguiria acreditar nele. E aquela foi a única vez que não fui à farmácia comprar remédios.

INT. DIA - MORETTI na sala de espera lotada.

MORETTI (off) Então, voltei ao instituto dermatológico. Mas não para a sessão de dermatologia. E sim para a alergologia. 


CONSULTÓRIO INT - DIA

Moretti sem camisa. Médico examinando-o.

MÉDICO #4 - Quer dizer que...

MORETTI -Cuidado com as verrugas.

MÉDICO #4 - Pode deixar. Os testes mostrarão se é alérgico como acredito. Primeiro testaremos os grandes grupos. Alimentos, poeira, pólen. Depois as substâncias
individuais.

INT. DIA MORETTI em sua casa, em frente à geladeira aberta.

MORETTI (off) - Durante uma semana tomo trinta picadas por dia nas costas. Descobre-se, então, que sou alérgico aos grandes grupos. Como leite, derivados, nozes, sementes, peixe e carne suína. No dia seguinte, foram identificados os alimentos individuais... aos quais sou alérgico e que por enquanto não posso comer.


INT. DIA FARMÁCIA

Moretti e dois atendentes.

MORETTI - Sou alérgico a muitos alimentos e resolvi fazer uma vacina. Os alimentos são, milho, cevada, aveia, alho, cebola, mostarda, amêndoa, feijão, soja, ervilha, fava, grão de bico, salsinha, alface, lúpulo, chá, pimenta, castanha, salmão, sardinha, atum, albumina de leite de vaca, caseína de vaca e cabra, gorgonzola, parmesão, provolone, queijo holandês e carne de porco.


INT. NOITE CASA DE MORETTI

Moretti na cama, se coçando.

MORETTI (off) - A coceira continua. Mas graças à recomendação de um amigo consigo marcar uma consulta com o príncipe dos dermatologistas. Nos últimos dias, antes de tirar férias.


INTERIOR - DIA - CONSULTÓRIO

[Moretti e o MÉDICO, o príncipe dos dermatologistas]

MÉDICO - Colopten três vezes ao dia.

MORETTI - Sei.

MÉDICO - Cinazin, vinte gotas após as refeições. Caprolisin, uma ampola às 18h.

MORETTI - Sei, sei.

MÉDICO - Antes de se deitar, você vai alternar Fenistil, Xanax e Atarax.

MORETTI - Cada noite um?

MÉDICO - É, alternados.

MORETTI - Sei, sei.

MÉDICO - Para as pernas e os braços, os quatro produtos que prescrevi aqui. E para a coceira na cabeça, use o fluido Lecoval Scalp, 3 ou 4 gotas. E não se esqueça de lavar a cabeça todos os dias alternando esses três xampus que prescrevi aqui.

MORETTI - Mas todo dia?

MÉDICO - Todo dia. Vai ter que me ajudar, moleque. Eu e minha família somos seus fãs.

MORETTI - Obrigado.

MÉDICO - Mesmo sendo verão e fazendo muito calor, vai ter que usar sempre, sempre meias de algodão até os joelhos. Estou vendo que não usa meias, está sem meias.

MORETTI - Não, no verão eu não uso.

MÉDICO - E camisas de mangas compridas, mesmo na praia. A pele tem que estar sempre em contato com o algodão, sempre. Vou deixar aqui o telefone de minha casa de praia. Quando eu voltar de férias, já deve ter melhorado.

MORETTI - Eu espero que sim. E desculpe se vim sem avisar.

MÉDICO - [telefonando] Senhorita, faça um preço especial para o Sr. Moretti.


INTERIOR - DIA - FARMÁCIA

[Moretti de pé, perto do balcão; uma atendente lendo a receita, atendentes colocando os remédios que ele pede em cima do balcão]

MORETTI - Caprolisil, Cinazin... E também tem os cremes. lctiane, Akerat, Cinazin... lctiane creme e Akerat. Suagem para o corpo e Fargan pomada. 
E os xampus. Factan, Apolar e Mavigen.

ATENDENTE #1 -Vou buscar.

MORETTI - Tenho que alternar. Temos Factan, Entorgenina, Cinazin, Atarax, Caprolisin.

ATENDENTE #1 - lctiane, Akerat, Apolar...


INT. NOITE CASA DE MORETTI

Dormindo. Começa a coçar-se. Acende o abajur. Levanta-se, ainda se coçando. Vai até a sala de estar. Senta-se no sofá. Folheia um livro de fotografias.


INTERIOR - DIA - PRAIA

[Moretti de meias e blusa de mangas compridas. Um minuto e meio de duração]


INTERIOR - DIA - CASA MORETTI

[Moretti sentado à sua escrivaninha]

MORETTI - (V.O.) Até que um dia decidi ler as bulas que acompanhavam os remédios. (lendo) "Caprolisin: anti-hemorrágico, indicado em todas as síndromes hemorrágicas e nas hemorragias internas." Então, Caprolisin é um anti-hemorrágico. Fora com ele. Agora, Cinazin: "ajuda na circulação cerebral". Então, ajuda a circulação. Fora.


INTERIOR - DIA - CASA MORETTI

[sentado à escrivaninha. Telefonando.]

MORETTI - (V.O.) Caro diário, chegaram as vacinas. Por precaução, resolvi consultar um amigo imunologista. [ao telefone] Ei, Guido, sou eu Nanni. Bem, razoavelmente bem. Escuta, não dá para explicar tudo agora, mas há um mês e meio eu fiz uns testes alérgicos e deu um resultado alérgico múltiplo. Eu mandei fazer umas vacinas que chegaram hoje e naturalmente (pausa, ouvindo) Como um choque anafilático? 


INTERIOR - DIA - CARRO

[Ele está dirigindo. Tudo foi filmado do banco de trás.]

MORETTI - (V.O.) Ele me disse que aquele tipo de vacinas é inútil, que pode causar um choque anafilático. As minhas coceiras não tem nada a ver com alergia alimentar que causam urticária, bolhas por todo o corpo. Sim, e não uma simples coceira. Eu recomeço a procurar os dermatologistas. Existe um tal de Magari, não tão famoso quanto o príncipe, mas do qual me falaram muito bem. Marco uma consulta com ele também.


INTERIOR - DIA - CONSULTÓRIO MAGARI

[Moretti coçando-se, falando, sentado à mesa do charlatão Magari]

MORETTI - (V.O.) Hoje minha lambreta quebrou. Tive que sair de carro. Mais de uma hora no trânsito. O trânsito me deu nos nervos. A gente vai ao médico porque está mal e paga caro para ter que ouvir.

Magari - Está parecendo um perdedor. Na minha opinião, um caso psicológico. Lamento que seja um perdedor. Por que você está se coçando?

MORETTI - É a coceira...

Magari- Não há necessidade urgente, mas você se coça. [escrevendo] Seja como for, Trimeton injetável, uma injeção à noite durante uma semana. Fenistil, um comprimido após o jantar. E Lagederme, um creme quando coçar.

Entrega a receita a Moretti.

MORETTI - Obrigado.

Magari - Eu receitei os remédios, mas lembre-se: depende de você.


EXT. NOITE Moretti dirigindo

MORETTI - Hoje eu me convenci de que a causa da minha coceira é só de natureza psicológica, depende de mim, é culpa minha, unicamente minha. Eu tento me lembrar do que fiz, do que me aconteceu há oito meses, quando começou a coceira. Tudo depende de mim, o médico disse que eu devo colaborar, devo me esforçar para não me coçar. Tudo depende de mim. E, se depende de mim, com certeza eu não vou conseguir.


INTERIOR - NOITE - SALA CASA MORETTI

[deitado no sofá está Moretti, se coçando]

MORETTI - Droga! (V.O.) Minha mãe me deu um pijama de seda e lençóis de linho para aliviar a coceira. Agora, porem, não se trata somente da coceira. Eu adormeço, mas acordo depois de meia-hora. Eu durmo em média de uma hora e meia a duas horas.


INTERIOR - DIA - QUARTO CASA MORETTI

[MORETTI deitado em sua cama. MASSAGISTA massageando os pés dele.]

MASSAGISTA - Sabe, eu fiz algumas sessões de terapia em uma senhora durante algum tempo e consegui reduzir a taxa de seu colesterol. São essas coisas que dão satisfação à gente.

MORETTI - Eu não sei mais o que fazer com essa minha coceira.

MASSAGISTA - Para a coceira, deve-se evitar completamente todos os alimentos vermelhos: tomate, cenoura, laranja, morango... Nada de alimentos vermelhos.

MORETTI - Esta noite que passou, eu me cocei o tempo todo.

MASSAGISTA - Vejo que feriu seu dedão. O dedão corresponde a cabeça. Você queria machucar sua cabeça esta noite.

MORETTI - É, eu sei, mas o que eu faço, passo um creme?

MASSAGISTA - Faça compressas com folhas de couve. Pegue as folhas de couve, ponha na água fervendo e faça compressas. Vai se sentir melhor, vai ver.

MORETTI - É, entendi, perfeito, perfeito. (V.O.) Mas eu não sabia se as massagens iam me fazer bem ou não. Mal elas não me fariam. Seja como for, era bem agradável, muito relaxante.


INTERIOR - DIA - BANHEIRO CASA MORETTI

[Banheira cheia de farelo de trigo. Moretti dentro, claro]

MORETTI - (V.O.) A reflexologista me receitou, além do creme de calêndula, rives nigrum e gotas de tília tormentosa. Também me mandou tomar banho usando os farelos de trigo.


INTERIOR - DIA - ANTRO CHINÊS DE MEDICINA

[Dois médicos chineses, YANG E CHU HU estão entre MORETTI, os três sentados. Em frente a eles, há um TRADUTOR.]

MORETTI - (V.O.) Continuo emagrecendo e, à noite, começo a suar. Decido procurar o Centro de Medicina Chinesa e sou atendido por dois médicos, Chu Hu e Yang. Eles tomam meu pulso; depois de algum tempo eles trocam de lado.

[Trocando de lado. Medem novamente o pulso de Moretti. Diálogo em chinês.]

TRADUTOR - Tem tomado muito vento?

MORETTI - Vento? Eu ando muito de lambreta, mas em Roma não venta muito, não.

TRADUTOR - Na medicina chinesa tradicional, a coceira corresponde ao vento no sangue.

YANG- Mostre a língua.

{Moretti o faz}

CHU HU- Está branca, pegajosa.

[outro diálogo em chinês]

CHU HU- Tem os rins caídos?

TRADUTOR - O dr. CHU HU quer saber se no ano passado você teve excessos sexuais.

MORETTI - Não.


INTERIOR - DIA - SALA DE ACUPUNTURA

[YANG está espetando agulhas em Moretti, que está deitado na mesa.]

MORETTI - Aahhh...

YANG- Doeu?

MORETTI - Um pouco.

YANG- Estas são as últimas, está bem?

MORETTI - Sim.

YANG- Pronto, acabou.

[YANG sai da sala. Moretti permanece deitado, em silencio.]

MORETTI - (V.O.) O dr. YANG me deixou sozinho no quarto. Fiquei sozinho por uns 5 ou 20 minutos e então cochilei um pouco. A certa altura, ele voltou.

{YANG volta com imãs}

YANG- Como está?

MORETTI - Bem.

YANG- Sente um pouco de calor?

MORETTI - Sinto.

EXTERIOR - DIA - ESTACIONAMENTO

[Moretti está se dirigindo a seu carro.]

MORETTI - (V.O.) Por enquanto, a acupuntura não fez qualquer efeito, nem sobre a coceira, nem sobre a insônia. Mas no centro de medicina chinesa são todos gentis, a atmosfera é simpática e eu vou fazer outras tentativas.


INTERIOR - DIA - SALA DE ACUPUNTURA

[Moretti deitado, médicos para lá e para cá, aquela coisa toda]

YANG- Aperte com bastante força, tá?

MORETTI - Tá.

YANG- Como está?

MORETTI - Estou bem.

YANG- Está doendo?

MORETTI - Está.

YANG- Eu posso aumentar?

MORETTI - Pode.

MORETTI - (V.O.) Para curar a minha coceira, eles tentaram um tipo de acupuntura elétrica com um instrumento chamado agulha de flor de ameixa. Mas o doutor Iak nota a minha tosse e diz que esse tratamento não serve. Nesse momento, o melhor seria tirar uma radiografia do tórax.


INTERIOR - NOITE - CONSULTÓRIO

[Moretti sentado numa cama de hospital, tirando a camisa a fim de tirar uma radiografia]

MORETTI - A camiseta também?

YANG- [entregando-lhe uma placa] Não, não, não, só a camisa, porque tem botões. Aperte bem esta placa com o queixo, com o queixo ligeiramente levantado. Agora respire, atenção, prenda a respiração.

MORETTI - (V.O.) O técnico que tirou a radiografia a revelou imediatamente e disse à Silvia que havia uma coisa em torno do pulmão, uma espécie de massa, e a aconselhou a fazer logo uma tomografia.


INTERIOR - DIA - LOCAL

YANG- E aí, tem gosto ruim?

MORETTI - Não, tem gosto de anis.

YANG- Anis?


INTERIOR - DIA - SALA DE TOMOGRAFIA

[Moretti deitado, fazendo o exame.]

MÉDICO- (V.O.) Respire. Pára. Não respire, parado. (pausa) respire. Parado. Não respire. Parado, respire.

MORETTI - (V.O.) Enquanto faço uma tomografia de cabeça, o radiologista da clínica examina a do tórax. E fala a Silvia e Ângelo. Diz ele que, em sua opinião, eu tenho um sarcoma no pulmão. Pergunto o que é isso e ele diz que é câncer nos pulmões e que em sua opinião, minha situação é incompatível com qualquer tipo de tratamento.


INTERIOR - DIA - CAFE

[Moretti sentado à uma mesa]

MORETTI - (V.O.) Bem, por sorte, o radiologista estava enganado. Dois dias depois, eles acabaram me operando e o meu amigo que é médico e que estava presente à operação, mais tarde em contou que o cirurgião, observando, olhando um pedaço do material que eles haviam extraído de mim teria dito: "Aposto qualquer que se trata de um Linfoma de Hodgkin. Os dois, não; mas um, sim." O Linfoma de Hodgkin é um tumor no sistema linfático, um tumor curável. Depois, um dia em casa, folheando um manual chamado "Enciclopédia Médica Garzanti", na palavra Linfoma vejo escrito: "Os sintomas são coceira, emagrecimento e transpiração". Mas uma coisa eu aprendi com toda essa estória: a primeira é que os médicos sabem falar, mas não sabem ouvir e agora estou rodeado por todos os remédios inúteis que tomei durante um ano. A segunda coisa que aprendi é que antes de tomar café, faz bem tomar um copo d'água. Ouvi dizer que faz bem para os rins, qualquer coisa assim, mas faz bem. [ao garçom] E agora vou querer um café com leite e um croissant, obrigado. E um copo d'água. [servem-lhe a água] Obrigado.

[B.G. de vitória / Moretti bebe a água.]

FIM

6.7.09

QUANDO PARIS ALUCINA

Título original: "Paris - When It Sizzles" USA 1964
Comédia romântica, dirigida por Richard Quine, com roteiro baseado em história de Julien Duviviver e Henri Jeanson.

CORTA P/
Opa! Comédia romântica?
Sim, mas não é o que parece. Eis a última boa comédia dos tempos áureos do cinema americano.
Mais um filme-texto, do tipo que tanto aprecio. Contém poucas externas (a não ser no metafilme); tem vários e apetitosos minimonólogos bensonescos; diálogos ágeis e espirituosos; um clima encantador; deliciosas e intermináveis alocuções; atuações resplandecentes e gostosamente exageradas, como no antigo teatro grego.
Foi o filme que Audrey Hepburn mais gostou de fazer e certamente o mais interessante que ela fez.
William Holden está mais do que encantador nesta película, e seu personagem, o roteirista procrastinador Richard Benson, esbanja charme do começo ao fim.
Por que diabo não se fazem mais comédias assim, hein?


EXT. DIA - SOL

GPG de uma ilha. Meyerheim ditando e desenhando nas costas de uma mulher de biquini. Outra garota de biquini escreve num bloco.

MEYERHEIM - "Memorandum à Paramount Pictures,
Hollywood, Califórnia.
De: Alexander Meyerheim.
Assunto: A última produção.
Cavalheiros, enquanto se sentam nos vossos confortáveis gabinetes, nós aqui... nas trincheiras, fazemos bom progresso.
Quanto às vossas ansiedades acerca do roteiro, falei com o autor em Paris. Assegurou-me ter já 138 gloriosas páginas a serem dactilografadas.
Juntamo-nos em Paris no Domingo.
Ponto final.
Parágrafo."

MEYERHEIM - Cavalheiros, o sucesso é inevitável. É uma produção de Alexander Meyerheim de uma história e roteiro originais de Richard BENSON.

A mulher em quem ele desenhava levanta-se exaltada.

MULHER - Richard Benson?

MEYERHEIM - Conhece-o, meu anjo?

MULHER - Se conheço? Detesto-o!

MEYERHEIM - Richard Benson... Parece ter facetas que conhece melhor que eu. Nem imagino como acha tempo para escrever.

HOMEM - lnfelizmente teve tempo de me escrever um roteiro. Acharam as últimas dez páginas ao largo de Malibu, numa garrafa de vodka.

MEYERHEIM - Envie a Benson o telegrama do costume. O Richard assegura-me que se tornou abstémio.


EXT. DIA - SOL

GPG Torre Eiffell. BENSON deitado ao sol, bebendo em sua varanda.
Cenas num parque e mais cenas das ruas. Numa das cenas surge SIMPSON, andando com seu pássaro. Ela entra num prédio e entra no elevador. Ao chegar ao apartamento de BENSON, lê as placas: "NÃO lNCOMODAR" e "REFERE-SE A VOUS!" "E A VOUS TAMBÉM! MERCI RB"

BENSON já saiu do terraço e adentrou a sala de estar. SIMPSON toca a campainha.

BENSON - Está aberta. Entre.

SIMPSON entra.

BENSON - Sim?

SIMPSON - Sr. Benson?

Ele está vestindo-se.

BENSON - É a jovem dactilógrafa?

SIMPSON - Sou.

BENSON - Para um relacionamento feliz e harmonioso, peço-lhe, nunca responda com perguntas. Fui claro?

SIMPSON - Fiz isso?

BENSON - Lá está de novo, respondendo com perguntas.

SIMPSON - O meu 'sim' foi uma pergunta, inferida, claro. Sabe o que é inferido e pressuposto? Não é uma pergunta?

BENSON - É. Respondeu à pergunta com outra.

SIMPSON - lnferir é indicar sem dizer aberta ou directamente, pressupor é concluir a partir do conhecido ou suposto. Chamo-me Gabrielle SIMPSON.

BENSON - Isso é um pássaro?

SIMPSON - Como este trabalho vai durar dias, não tinha ninguém com quem o deixar.

BENSON - Bem cá estamos. O escritório é ali, eu vivo aqui em cima, o terraço é lá fora. Aquele mostrengo proeminente no horizonte é a Torre Eiffel. Mandei pô-la ali para me situar melhor. Se a ofende, mandarei removê-la. O seu quarto é por aqui. É contíguo, o que, não duvido, lhe trará à mente conotações sinistras.

SIMPSON - De modo algum...

BENSON - Ponha-as de parte. Dava-lhe um quarto lá ao fundo, mas tenho a choça cheia. Dia da Bastilha, sabe como é.

SIMPSON - Deixe. Trabalhei com um autor americano que só escrevia na banheira. Habituei-me a tudo.

BENSON - Pode desfazer a mala. (pausa) Na banheira?

SIMPSON - Sim. Ofereci-lhe gel para o banho e demo-nos como peixes na água.

BENSON - Entendo. Devo subentender que o pássaro se chama Richelieu?

SIMPSON - lnferir, creio eu, e não subentender.

BENSON - Como peixe na água. Metáfora interessante. Chama-lhe Richelieu porque queria um cardeal?

SIMPSON - (rindo) Que engraçado.

BENSON - Não, não é. É o que faz ser um espirituoso internacional, que sou. Não posso parar.

SIMPSON - Estou tão feliz com este trabalho, Sr. Benson. E por poder trabalhar com um guionista da sua estatura. lnteresso-me por cinema. Decerto que aprenderei muito.

BENSON - Obrigado.

SIMPSON - Trabalhei com Roger Roussin, o realizador da Nova Vaga. Conhece-o?

BENSON - Eu sou mais da Velha Vaga.

SIMPSON - O filme é interessante. Muito avant-garde. É sobre umas pessoas, numa festa, que decidem não jogar Scrabble. Chama-se "O Jogo de Scrabble Não Terá Lugar". O próximo será sobre uma moça que não quer festa de anos. Soprar Velas É Mentira. Roger acredita que o importante é o que não se vê. O seu filme já tem título?

BENSON - Claro. "A garota Que Roubou A Torre Eiffel".

SIMPSON - "A garota Que Roubou A Torre Eiffel". Soa fascinante. O título é simbólico? Ela não rouba mesmo a Torre Eiffel. Rouba? Qual é a história?

BENSON - É uma tragédia romântica com acção e suspense. Com muita comédia, claro. E, lá no fundo, um substrato de comentário social.

SIMPSON - Bem, se me mostrar as páginas que escreveu poderei avaliar o volume de trabalho.

BENSON -  As páginas estão aqui mesmo.

BENSON (lendo e enfileirando os papéis em branco) - Uma produção de Alexander Meyerheim. "A garota Que Roubou A Torre Eiffel" História e roteiro originais de Richard Benson. Aqui, com uma página ou duas de cenas de abertura filmadas, talvez, dum helicóptero, um moço e uma moça conhecem-se.

SIMPSON - Mas, Sr. Benson...

BENSON - Após conversa miúda, tipo 'quem-sou-quem-és', que escrevo muito bem, sente-se uma atracção inconsciente entre os dois. lndicando aos espectadores os trémulos começos dum amor. De seguida, conflito! Adivinha-se pela música, quão plena de perigo é toda a situação. E agora a primeira permuta. O público engole em seco ao ver que foram enganados. As coisas não são o que parecem. De modo algum. Na verdade, a situação reverte-se por completo, o que envolve uma magnífica e engenhosa permuta... à permuta. Atônitos com o súbito desenrolar dos acontecimentos, o rapaz e a garota constatam o quanto estão errados. Nesse ponto, a música retoma um tom fatídico. Dão-se conta do perigo em que estão, e a perseguição começa! Derrapagens, telhados, figurinhas ao longe, correndo pela cidade aterrorizada. De súbito, num beco deserto, sentado numa lata de lixo, o pêlo emaranhado e molhado da chuva, e em primeiro plano, o gato! Ao aproximarmo-nos gradualmente do clímax, a música ascende. E ali, totalmente inconscientes da chuva torrencial que lhes cai em cima, caem, feliz e ternamente, nos braços um do outro. E, enquanto os espectadores se babam de prazer sexual subliminal, as duas enormes e exorbitantemente pagas cabeças aproximam-se para o inevitável momento final. O que agita o solo, paga a renda, enche cinemas, e vende pipocas... O beijo final.

BENSON e SIMPSON beijam-se, sentados na escada.

BENSON - A imagem desvanece. Fim.

BENSON a solta e levanta-se. SIMPSON permanece sem ação, surpresa.

BENSON - Aqui está. 138 páginas. Porquê mais longo? Teríamos de o cortar.

SIMPSON - Sr. Benson...

BENSON - Sim?

SIMPSON - O roteiro, quando tem que estar acabado?

BENSON - Bem, vejamos, hoje é sexta-feira. O meu amigo, patrono e produtor, Sr. Alexander Meyerheim chega a Paris, de Cannes, às dez horas da manhã de domingo, que calha ser o Dia da Bastilha. Perfeito! Ás 10:01 damos-lhe o roteiro acabado e iremos celebrar. Beber champanhe, dançar nas ruas, fazer o que se faz a 14 de Julho.

SIMPSON - Muito amável, mas tenho um encontro. Ainda não escreveu nada?

BENSON - Tem um encontro?

SIMPSON - O filme inteiro tem que ser feito em dois dias?

BENSON - Menina Simpson, se não está à altura, diga-mo já. Posso arranjar outra pessoa.

SIMPSON - Não, não quis dizer isso. É apenas, bem, bastante invulgar, não é?

BENSON - Para mim, não.

SIMPSON - Mas tem pensado muito no filme?

BENSON - Não, não tenho.

SIMPSON - Então, que tem feito?

BENSON - O que qualquer escritor de garra americano faria, ou deveria fazer, nas primeiras 19 e tal semanas da comissão. Esqui aquático em St. Tropez, apanhar sol em Antibes, estudar Grego.

SIMPSON - Grego?

BENSON - Conheci uma aspirante a actriz, uma representante grega no festival de Cannes. E claro, umas semanas a desaprender Grego, o que envolveu carradas de vodka, uma ida imprevista às touradas de Madrid as quais, e felizmente, já que não suporto sangue, tinham seguido há muito para Sevilha. Nas semanas 17 e 18 estive no casino de Monte Carlo, a tentar, insensatamente, ganhar dinheiro suficiente para comprar o meu contrato, que vale $5.000 à semana, ao meu amigo, empregador e patrono, Sr. Alexander Meyerheim, para não ter de escrever o filme. Tome nota. Para o manual sobre guiões que um dia escreverei, nunca jogar no 13, 31 e cantos respectivos por muito tempo e com quantias consideráveis. Não resulta. Agora, tenho de mostrar resultados. Comecemos? Uma produção de Alexander Meyerheim. Aspas, reticências. A garota Que Roubou A Torre Eiffel. Gosta do título?

SIMPSON - Sim, é intrigante.

BENSON - Também intrigou Meyerheim. Comprou-o, sem ver o roteiro.

BENSON passa a ditar. SIMPSON anota.

BENSON - História e roteiro originais de RICHARD BENSON. Página um. Acção. Exterior. Paris, naturalmente. Vejamos, noite ou dia? Dia. Começa-se... com uma imagem... da Torre Eiffel. Primeiro plano. Numa plataforma, solitária e ao vento, está uma misteriosa mulher de negro. Olha para o relógio. E vemos... Como raio hei-de saber? Mulher misteriosa de negro. Como caem os poderosos! O filme não pode ser tão óbvio, não podemos dar todas as informações tão cedo. [pensando] Certo. "Início. Exterior - Dia do Sagrado Coração", escreva isto. "Grand Palais". Ah, devemos fazer a audiência sentir o gosto, o cheiro da verdadeira Paris. Certo.


EXT. - DIA - RUA EM FRENTE A CHRISTIAN DIOR

[Carro parando, motorista sai, abre a porta para mulher, que também sai do carro... Tal qual BENSON narra]

BENSON - [off] "Exterior - Christian Dior. A câmera focaliza e agora vemos um Rolls-Royce parando ali." Espera um pouco, devemos colocar um... O motorista, todo de branco sai do carro e abre a porta. De dentro sai uma atriz belíssima, do tipo clássico como [pensando] Marlene Dietrich... e agora ela entra magistralmente na loja... 


INT. - DIA - QUARTO HOTEL BENSON

[BENSON, SIMPSON, MESMAS POSIÇÕES]

BENSON - Essa é a última cena que temos dela. Mas não faz muito sentido, Alex teria adorado isso. Ele poderia [a Simpson] Como é mesmo o seu nome?

SIMPSON - Gabrielle Simpson.

BENSON - Há quanto tempo está morando em Paris?

SIMPSON - Dois anos.

BENSON - E veio aqui para escrever.

SIMPSON - É, para isso também. Mas eu vim para... [arremata sorridente] Eu vim para viver.

BENSON - Viver... [pausa para pegar um copo] Se não se importa... Você estava dizendo que veio aqui para viver.

SIMPSON - É, passei os primeiros seis meses fazendo um estudo compreensivo sobre depravação.

BENSON - Está brincando?

SIMPSON - Sério. Jamais ia para cama antes das oito da manhã. Nem posso contar as inúmeras xícaras desse café preto e venenoso que eu devo ter consumido. Eu não bebia, então era mais difícil entrar no espírito da coisa. Realmente a depravação pode se tornar muito chata se você não fuma nem bebe, mas uma pessoa deve de fato tentar crescer.

BENSON - E esse rapaz com quem você tem um encontro no Dia da Bastilha é parte do processo de crescimento?

SIMPSON - Ah, não, ele é só um amigo. É um jovem ator muito esforçado.

BENSON - Um ator?! Ah, o tipo de relação desastrosa para quem está começando. Eu só espero que ele não seja um desses atores metódicos que pula palavras, murmura e hesita bastante, destruindo o ritmo impecável da prosa do autor.

SIMPSON - Ah, ele é um pouco dramático, mas muito engraçado.

BENSON - E você e esse atorzinho... O que vão fazer no Dia da Bastilha?

SIMPSON - Vamos passar o dia inteiro juntos, começando pelo café da manhã na lanchonete que frequentamos; depois vamos dançar de um extremo a outro de Paris; Ópera às cinco; vamos ver a troca da guarda, o canto da Marselhesa; vamos para Montmartre para um show de fogos com ceia e champanhe, enfim, viver!

BENSON - Você realmente gosta disso...

SIMPSON - De que?

BENSON - Vida.

SIMPSON - Ah, todas as manhãs, quando eu acordo e vejo que há um dia inteiro me esperando, eu viro uma caricatura.

(Pausa)

BENSON - Eu tenho uma idéia, a primeira que eu tenho em quatro meses. Não, não é verdade. Há poucas semanas eu tive a idéia de abandonar a bebida, mas não emplaquei. Mas esta poderá ser ótima, muito boa mesmo. Uma estória simples sobre uma parisiense simples e trabalhadora e como ela passa o 4 de julho. Todo o filme se passa em um só dia. E eu tenho dois dias para escrevê-lo.


EXT - DIA - RUA LOTADA, PRÓXIMA A LANCHONETE

BENSON - [off] "exterior de Paris", nossa estória começa na manhã do Dia da Bastilha. E todos os trompetes de Paris estão soando. Acima de um plano do Arco do Triunfo superpõe-se "Produção de Alexander Meyerheim". Corta para a Torre Eiffel, título principal: "A Garota que Roubou a Torre Eiffel"; os trompetes continuam na inevitável música do título. Segue-se então a interminável lista dos outros créditos dando conhecimento dos esforços dos outros membros da equipe aos quais gentilmente agradeço no meu discurso na Academia de Cinema [letreiro: pessoa pequena] E, ao soar dos instrumentos: "Texto original e roteiro: Richard Benson. Início de cena: Uma simples trabalhadora parisiense que se parece muito com você, senhorita Simpson, surge vinda de uma simples moradia parisiense e atravessa a praça através da multidão. Senta-se à uma mesa nesta pequena lanchonete. Com uma ansiosa premonição, aguarda a chegada de seu namorado, um ator."
 

INT - DIA - QUARTO HOTEL BENSON

[mesmas posições da cena 1]

BENSON - Agora eu acho que devemos descrevê-lo. Eu o vejo como uma pessoa curiosamente pouco atraente.

SIMPSON - Não, não, ele é muito bonitão, aliás, ele é um pouco parecido com [expressão sonhadora] Tony Curtis.

BENSON - Eu o vejo como um desses sussurrantes e hesitantes atores destinados apenas a papéis menores em substituições a personagens importantes e seu nome não é Philip, é Maurício.


EXT - DIA SOL - LANCHONETE

[A cena descrita por BENSON. PHILIP chega em sua motoca, desce e cumprimenta GABI. Atuações ainda mais exageradas, especialmente a de PHILIP, bem afetada]

PHILIP - Bom dia, neném.

GABI - Ai, querido, eu estou tão ansiosa que nem dormi um segundo a noite toda. Você gostou do meu vestido?

PHILIP - [sem olhar para ela] É engraçadinho.

GABI - Eu gostaria de saber se você acha ruim se, no lugar de um café da manhã tomarmos um champanhe aqui mesmo antes de começarmos.

PHILIP - Ah, escuta, nenê.

GABI - O que é, Maurício?

PHILIP - Esse negócio de Dia da Bastilha... Vamos ter que esfriar esse negócio um pouquinho, entendeu?

GABI - Mas, Maurício, eu não estou entendendo.

PHILIP - Escuta, veja bem, nenê, eu vou ter que cancelar. Veja o que aconteceu ontem à noite, quando eu estava fazendo uma cena na drogaria. Estava esperando por um expresso com um cara da cidade quando de repente esse cara de vanguarda entra e me diz que o seu nome é Roger Roussin e que ele está fazendo um filme sobre o Dia da Bastilha. [ainda mais afetado] "Não há dança nas ruas!"

GABI - "Não há dança nas ruas!"

PHILIP - No filme de Roger está chovendo... Não importa, ele me ofereceu a direção.

GABI - Ah, Maurício, estou tão feliz por você.

PHILIP - Nenê, eu vou ter que ir embora, estaremos gravando o dia todo dentro dos esgotos.

GABI - Eu entendo.

PHILIP - Sabe o que é, eu estou motorizado, eu posso te levar.

GABI - Não, obrigado, eu prefiro ir andando.

[Despedem-se]

PHILIP - Tchauzinho, tá. Até a próxima. 

BENSON - [off] Com um narcisismo quase lunático, peculiar à sua curiosa ocupação, Maurício, de maneira realmente afetada, monta na sua patinete motorizada. Nossa heroína é deixada angustiada e aflita e não percebe que agora sua condição é melhor do que a anterior.


INT - DIA - QUARTO HOTEL BENSON

[SIMPSON, parando de escrever, comenta num misto de tristeza e sutil indignação]

SIMPSON - Mas eles iam passar o dia inteiro juntos!

BENSON - Minha querida, você acaba de testemunhar a primeira mudança.

SIMPSON - Pode ser, mas Maurício jamais se comportaria assim. Além disso, o nome dele não é Maurício, é Philip.

BENSON [elegantemente ignorando-a] - Agora então, tendo se livrado com sucesso de seu namorado no feriado da Bastilha, evoluímos para assuntos importantes: o conflito.

SIMPSON - Conflito?

BENSON - Outro homem! A terceira posição obrigatória de um triângulo. O tal Rogê que você falou não te ensinou nada sobre roteiro de filmes?

SIMPSON - Hmm...

BENSON - "Então, por um momento Gabi senta-se..."

SIMPSON - [interrompendo-o] Gabi?

BENSON - Nós temos que chamá-la de algum nome. "Por um momento, Gabi senta-se ali. Uma figura solitária e patética. Mas sem que ela saiba, essa pequena cena de quebrar o coração foi testemunhada por... um misterioso desconhecido."

SIMPSON [entusiasticamente] - Um misterioso desconhecido! Que excitante!

BENSON - Srta. Simpson, antes que a senhorita deixe os confins deste despretensioso quarto de hotel, a minha intenção é mostrar-lhe como pode ser tão excitante um misterioso desconhecido, então eu suponho que tenhamos que descrevê-lo.

SIMPSON - Ah, sim, eu também acho.

BENSON - Ele é americano, é claro. Eu posso descrevê-lo melhor assim. [fica em frente a um espelho]


EXT - DIA - LANCHONETE

[BENSON, ou melhor, Rick, está dançando animadamente com Gabi]

BENSON - [off] Vejamos então o que mais. Eu o vejo como um homem realmente alto, bronzeado de sol, com um corpo tipo atlético, com um rosto severo, mas curiosamente sensível. [pausa] Pobre e triste criatura, não consegue imaginar que em poucos minutos ela e o público terão esquecido completamente esse bobo e estúpido Maurício ou Philip, ou seja, lá qual for seu nome. Nesse momento mágico, sua vida de fato começou. Ele a toma ternamente em seus braços e movendo-se com a graça e a agilidade um Fred Astaire, dança com ela através da multidão. 

RICK - Em exatamente dez segundos eu quero que você bata em meu rosto sem razão alguma para confiar em mim. Há alguma coisa sobre seus grandes olhos mágicos e eu sou... Bem, o nome não importa. Pense em mim como o número 1331 da Inteligência dos EUA.

GABI - [desacreditando-o] Isso só pode ser brincadeira.

[BENSON entrega um buquê a ela]

RICK - Se olhar de leve para sua esquerda, sem mexer com a cabeça, você verá naquela janela [close em todos os espiões]. No buquê de flores que eu acabo de lhe dar, há uma espécie de microfilme. Eu não posso lhe dizer o que é, é claro. Tudo o que posso lhe dizer é que se ele cair em mãos erradas, poderá significar o fim de nossa civilização atual. Chegou a hora de bater em mim o mais forte que puder.

[Ela o faz, a multidão começa a se dispersar, espiões se mostram, BENSON corre, enorme confusão.]

 
INT - DIA - QUARTO HOTEL BENSON

BENSON - Pare, pare! Espiões vestidos com sobretudos? Eu estou achando que me excedi, srta. Simpson. Volta tudo. 


EXTERIOR - DIA, SOL - LANCHONETE

BENSON - [OFF] Certo, isso nos leva de volta onde estávamos. Estávamos bem na hora de nos vermos livres do namorado dela no feriado da Bastilha. O rapaz e a moça se encontram e dançam, dançam, dançam...
 

INT - DIA - QUARTO HOTEL BENSON

SIMPSON - E dançam, e dançam, e dançam... Sr. Benson?

BENSON - Agora então o misterioso desconhecido... O que ele está fazendo? 

SIMPSON - Está tocando a campainha.

BENSON - [ignorando-a com a costumeira classe] Que tormento está causando esta profunda tristeza através de seus olhos?

[SIMPSON levanta-se e vai atender a porta. É um telegrama. Ela o pega, agradece, fecha a porta e volta ao posto.]

BENSON - Por que enquanto ainda nos fazemos perguntas não escuto meu pai para aprender a fazer alguma coisa útil?

SIMPSON - Chegou um telegrama. Você não vai abri-lo?

BENSON - Não, srta. Simpson, não vou abri-lo porque estou inteiramente crente do que ele diz. A razão pela qual eu sei o que ele diz é que nas últimas dezenove e meia semanas eu recebi 134 telegramas do senhor Alex Meyerheim e todos exatamente dizendo a mesma coisa. "Quando estará o texto do filme terminado?" Como é que ele espera que eu termine? Como é que ele espera que eu escreva se ele fica me chateando dessa maneira? Noite e dia, telegramas, mensagens, telefonemas! "Como foi o dia de hoje? Trabalhou bem?" Triiiimmmmm! "Quando é que o roteiro estará terminado?" Fala de homens usando sobretudo, me espiona sempre, seu pessoal está em todos os lugares. Pelo que eu sei você também pode ser um deles, hein?

SIMPSON - [indignada] Sr. Benson!

BENSON - Ah, me desculpe. Nesses dias eu tenho me sentido... Como é o nome dele, o de "Os Miseráveis"?

SIMPSON - Jean Valjean.

BENSON - Ah, acho que é isso mesmo. Foi ontem à noite mesmo. Ontem eu jurei a ele que tinha 138 páginas na mesa em minha frente. Eu disse-lhe: "Alex, qualquer homem que pegue seu dinheiro e diga a você que tem 138 páginas na mesa em sua frente é nada além de um mentiroso e um ladrão." [pausa] Algumas vezes eu sinto que ele não confia em mim. [pausa] Eu já sei quem é o misterioso desconhecido, é um mentiroso e um ladrão. Certamente, em dias passados François Vior, que vivia de sua habilidade do que podia roubar, um ladrão de jóias, talvez. Um especialista em arrombar cofres. Não há cofre no mundo que ele não consiga abrir. E em segundos, só com as mãos. Significa que devemos começar tudo novamente, embora não seja tão sério. Só temos até agora oito páginas. Vejamos, estamos bem com "Produções de Alexander Meyerheim" e "A garota que roubou a Torre Eiffel" "História original de Richard Benson", e podemos aproveitar o jazz do dia da Bastilha. Só que nesse momento não começamos com GABI e sim com... Rick.

SIMPSON - Rick! Que nome excelente para um misterioso desconhecido!

BENSON - Não fique opinando, comece a datilografar. 
 

EXT - DIA - PRAÇA

BENSON - [V.O.] "Exterior - dia - Uma praça pitoresca. Entra um enorme grupo de festeiros barulhentos, a câmera focaliza um americano bem alto e muito bem bronzeado [ele mesmo]. Vamos colocar nele um tipo de roupa de mentiroso e ladrão, você sabe, várias sombras negras. Então, movendo-se com toda a graça de um gato selvagem, Rick aproxima-se da mesa onde Gabi está sendo repudiada por seu ator. Sua sobrenatural inteligência percebe a situação de uma só vez. Ele hesita. Se há uma única fissura na armadura de Rick é uma cara bonita. Ele finalmente decide e vai em direção à uma outra mesa onde dois habitantes do submundo estão esperando-o.

[Rick senta-se à mesa onde eles estão.]

FRANÇOIS - Então, Rick, pensou sobre o assunto?

RICK - Digamos que eu andei considerando sua proposta.

FRANÇOIS - Trata-se de um plano extremamente simples e bonito. E aliás, muito original, bem fácil.

[Garçonete se aproxima com uma bandeja e, pondo o copo em cima da mesa]

GARÇONETE - Aqui está, sr. Rick.

[garçonete sai de cena.]

FRANÇOIS - Precisamos de você para somente duas coisas: para abrir o cofre e liberar a importância.

OUTRO - Umas poucas horas de trabalho e para isso um milhão de dólares que vamos, evidentemente, dividir em três partes.

RICK - Metade para mim e a outra metade a ser dividida entre vocês dois.

FRANÇOIS- [indignado] Mas, Rick, você já havia concordado!

RICK - Senhores, é fato já conhecido que eu sou não só um excelente arrombador de cofres como também um mentiroso e um ladrão. Metade para mim e a outra metade a ser dividida entre vocês dois.

FRANÇOIS- [V.O.] Muito bem, então, eu te pego com o carro às quatro horas. Até quatro horas então [levanta-se] Rick, resista de todas as formas a seu contínuo impulso de fazer o contrário do que deixamos combinado, sim. Nós dessa vez não seremos tão compreensivos como no ano passado em Tânger.


INT - DIA - QUARTO HOTEL BENSON

[Aposentos de BENSON, ambos estão sentados na cama.]

BENSON - Agora, srta. Simpson, tendo estabelecido um clima de suspense, intriga e grande romance, chegamos mais uma vez a esse momento em que o rapaz e a moça se encontram. Precisamos agora de mais conflito. Um novo personagem talvez. Ah, encontrei! Sentado bem perto está o inimigo número 1 de Rick, o inspetor Gillet, da Força de Polícia Internacional. Parece que ele sabe alguma coisa que o público desconhece. E agora, srta. SIMPSON, que temos determinadas as bases do encaminhamento do enredo e temos inflamado o público com o desejo apaixonado de descobrir o que vem em seguida, eu não os culpo, eu estou louco para descobrir também, podemos fazer uma pausa por algumas páginas para um rápido bate-papo, para conhecer esse tipo de coisa que eu faço tão brilhantemente. A pergunta é: Onde essa cena tão charmosa deveria ocorrer?

cont.

EXT - DIA - RESTAURANTE

[Rick e SIMPSON estão caminhando em direção à mesa.]

BENSON - [V.O.] Durante o almoço, isso mesmo. Ele a leva até um bonito restaurante para almoçarem no Bois.
 

INT - DIA - QUARTO HOTEL BENSON

SIMPSON - Isso é ridículo! Ela simplesmente não iria almoçar com uma pessoa que ela acabou de conhecer na praça. Ele é um... estranho.

BENSON - Srta. Simpson, ninguém é perfeito. Enquanto dançam, dançam, ele pergunta "Por que está triste, enquanto todos estão tão alegres?" e então uma sugestão do estranho misterioso: "Se você tentasse levantar pelo menos um pouco seu lábio superior, poderia ao menos criar a ilusão de um sorriso" [ela sorri desajeitadamente] essa maneira meio desastrosa de aliciá-la faz com que ele tenha agora de usar de todo o seu charme. Você sabe o significado da palavra serendipty?

[SIMPSON balança a cabeça em negativa]

BENSON - Srta. Simpson, eu estou surpreso, essa palavra significa "abrir seus olhos a cada manhã e olhar para o novo dia que brilha e ficar absolutamente abobalhado".

SIMPSON - Serendipty?

BENSON - Certo.

SIMPSON - Você está inventando isso?

BENSON - Não, serendipty é uma palavra verdadeira, ela de fato significa habilidade para descobrir o prazer, a excitação, a alegria em tudo o que acontece, não importando o quanto é inesperado.

SIMPSON - Serendipty.

BENSON - Ele explica para ela o significado da palavra de modo mais fascinante que eu e, no momento certo, propõe que eles tenham um maravilhoso almoço no Bois. Ela fica tentada.

SIMPSON - Claro que está, mas...

BENSON - Srta. Simpson, ele não está pedindo a ela que passe um fim de semana com ele em um motel num Bosque de Bolonha, ele a está convidando para um almoço. Você não acha que, se ele fosse terrivelmente charmoso, ela iria?

SIMPSON - Bem...

BENSON - Serendipty!

SIMPSON - Bem, talvez ela vá, mas se ele prometer que isso não vai passar de um almoço, absolutamente.

BENSON - Ele promete. A não ser, é claro, que ele consiga pensar numa coisa que ela queira fazer depois.

SIMPSON - Ela não vai querer.

BENSON - Sério? Está bem. Então ele chama uma charrete e eles vão a direção ao bosque, combinado?

SIMPSON - Combinado, mas agora vamos escrever isso tudo.

BENSON - De modo algum, a audiência está muito à nossa frente. Eles souberam que ela iria almoçar com ele há uma hora.

SIMPSON - Mas como tiramos eles da praça com todo esse charme, serendipty e todas essas coisas que faz tão bem?

BENSON - No negócio de cinema nós dispomos de uma técnica que cuida exatamente desse tipo de situação: a dissolução. Há muitos anos, o público vem sendo condicionado a entender que, quando uma cena desaparece como um velho soldado em frente de seus olhos e uma outra cena aparece gradativamente para tomar seu lugar, um certo período de tempo passou. Então, srta. Simpson, nós dissolvemos, dissolvemos muito lentamente em direção ao Bois. Uma charrete elegante levando nosso elegante par vai abrindo caminho por entre as quedas d'água e arvores até o magnífico restaurante. Veja, srta. Simpson, como inteligentemente eu vou tocar o nosso suspense melodramático de encontro a um ambiente de feriado que revela uma alegre Paris. Vamos poupar o público de ter que ouvir páginas e mais páginas de conversa chata e vamos diretamente ao âmago da questão, pelo simples uso do recurso que eu acabo de te explicar, a dissolução.


EXT. - RESTAURANTE, DIA

[Gabi e Rick dançando]

GABI - Quem é você e o que você faz?

RICK - Quem sou eu e o que faço... Não sou ninguém e fiz tudo e nada. Dirigi carros de corrida, cacei por uns tempos, toquei piano em um curioso estabelecimento em Buenos Aires, isso e aquilo, tudo e nada. É o destino inevitável de quem nasceu rico.

GABI - Ah, eu entendo muito que quer dizer, sobre o destino daqueles que nasceram ricos. Por essa razão, eu saí do Castelo e vim para Paris, para viver. 

RICK - O Castelo?

GABI - Temos casas pelo mundo inteiro, evidentemente. Mas a minha favorita é a de verão em Dorwill, com meu zoológico particular. Quando eu era criancinha, nas manhãs de domingo, dependendo do meu comportamento, me era permitido dar alimento às girafas.

RICK - [surpreso] Girafas! Não me diga que você também tinha girafas!

GABI - Quer dizer que você teve?

RICK - Mas é claro que tinha!

GABI - Que gracinha, nós dois tivemos girafinhas quando éramos crianças. O mundo é tão pequeno...

[Dissolve. Brinde]

SIMPSON - Ao Rick.

BENSON - A Gabi.

GARÇON - Se eu puder ajudar.

BENSON - Ah, pode deixar, eu prefiro escolher. Teremos finíssimas fatias de presunto cuidadosamente enroladas em volta de fatias de melão da Pérsia; a seguir, uma porção de linguado levemente passado em champanhe e manteiga. Para acompanhar, uma garrafa de...

SIMPSON - Pouilly-Fuissé.

BENSON - Pouilly-Fuissé serve. Queremos um chateaubriant para dois. Prepare esse para quatro, tostado e dourado e ainda bem passado por fora e bem cru por dentro. E com a filé teremos aspargos claros e uma garrafa de Château Lafite Rothschild 47 e para a sobremesa, uma enorme porção de framboesas silvestres.

SIMPSON - [intrometendo-se no bocal do telefone] Servidas obviamente com um creme tão denso que você deve servi-lo com uma pá mecânica, por favor.

BENSON - Você escutou a senhorita, e faça tudo rapidamente, estamos morrendo de fome. [desliga o telefone, a ela] Então, enquanto aguardamos as lâminas de fatias de presunto cuidadosamente enroladas em volta de fatias de melão da Pérsia; a seguir, uma porção de linguado levemente passado em champanhe e manteiga...

SIMPSON - Pára, por favor, eu não agüento mais. Você acha mesmo que eles vão preparar o linguado em champanhe e manteiga?

BENSON - Acho. Em todo caso, enquanto aguardamos, eu imagino que a graciosa senhorita Gabrielle Simpson vai querer acompanhar o talentoso Richard Benson em um leve aperitivo seco. Eu acho que ele está merecendo, acho que os dois estão merecendo.

SIMPSON - Está bem, acho que seria ótimo. Sabe, a princípio eu não gostava do Rick, mas ele está começando a ficar interessante. 

[Dissolve. Mostra a mesa desarrumada, os pratos e copos vazios e sujos. SIMPSON está sentada como se estivesse empanzinada.]

BENSON - Você dizia que o Rick está começando a ficar interessante?

SIMPSON - Ah, sim, muito atraente.

BENSON - Importante a reação do público feminino. Muito bem, o almoço está terminado, os mártinis, os dois tipos diferentes de vinho e o brandy fizeram seu efeito. Um glorioso e emocionante sonho está nascendo entre eles. As páginas, senhorita Simpson, essas que acabamos de narrar com nossa conversa gloriosa. Aqui você vai perceber, como anunciado na discussão de hoje cedo, a abertura, uma série de planos de fotografia muito interessantes e o rapaz e a moça, se é que um desconhecido misterioso de meia-idade pode ser chamado de rapaz, encontram-se...

SIMPSON - [interrompendo-o] Nós não somos de meia-idade, Sr. Benson. Acho até que somos muito bem conservados.

BENSON - Compreendo que isso me envaidece como nunca, srta. Simpson, entretanto, só para continuar, as páginas 8, 9 e 10 de um romântico bate-papo...

SIMPSON - O senhor faz isso tão bem...

BENSON - Muito obrigado, srta. Simpson. Então, você já pode perceber a atração inconsciente entre os dois, os inícios trêmulos do amor. Veja como é fácil quando se tem conhecimento profissional e experiência a seu favor, srta. Simpson, eu não acredito que saiba, mas a vida de um escritor é terrivelmente solitária.

SIMPSON - Sr. Benson, já tem alguma idéia do que vai acontecer em seguida?

BENSON - Você tem, srta. Simpson, alguma idéia do que vai acontecer?

SIMPSON - Não. Devemos nos lembrar que apesar de ele ser terrivelmente charmoso é também um ladrão e mentiroso, está escrito aqui...

[BENSON tenta beijar-lhe o pescoço, mas ela distraidamente dá um salto, sorridente]

SIMPSON - Sr. Benson, eu já sei o que acontece em seguida! O que acontece em seguida é a segunda mudança. A audiência fica sem ar quando constata que foi enganada. Ele a está alimentando com mártinis, vinho branco, tinto, brandy, por uma única razão: fazê-la ficar bêbada! [cambaleando] O que, aliás, ela não está nem um pouquinho, não importa o que ele pense. Então, enquanto ele força um último brandy em seus lábios em desejo... Pobre menina ingênua! Foi chamada e atraída pela idéia de que estaria a salvo nas mãos desse americano elegante e bronzeado. Ai, meu Deus! As coisas não são como parecem ser, não são mesmo. A música torna-se ameaçadora, o misterioso desconhecido...

BENSON morde-lhe de leve o pescoço.

SIMPSON - Quem é ele? Como ele é realmente? Como? E por que ele fica mordendo o pescoço dela o tempo todo?


INT - CAVERNA ARTIFICIAL

[BENSON e SIMPSON estão adentrando a caverna. Um morcego surge, ela grita escandalosamente]

RICK - Não fique assustada, minha querida, é só um morcego. As criaturas da noite são amigas minhas.

[Ela grita, agora assustada por conta dele, que começa a persegui-la]

GABI - Agora eu sei porque você insiste em morder meu pescoço, você é algum tipo de lobo.

RICK - Não, não, minha querida, eu sou um vampiro.

[SIMPSON grita ainda mais alto e aperta o passo. Ambos o fazem.]

RICK - O interior dessas cavernas é o lugar ideal para o meu laboratório.

SIMPSON - [OFF] Há alguma coisa sob esses olhos, ainda que sejam bem avermelhados. A vida de um vampiro deve ser muito solitária. Mas não! Não foi por acaso que ela fez um estudo sobre depravação. Suponho que hajam moças que deixam que um vampiro sugue seus pescoços no primeiro encontro, mas não a nossa Gabi. Ela consegue livrar-se de seu controle e a perseguição começa.

[SIMPSON sai da caverna, atravessa o parque perseguida por BENSON. Dois índios percebem, a perseguição.]

ÍNDIO- Você é pele vermelha?

GABI - Sou.

ÍNDIO - Eu também sou.

[Toca aqui, camarada! E, nesse meio tempo, Rick captura Gabi.]


INT - DIA - QUARTO HOTEL BENSON

[BENSON está deitado no sofá, dormindo. SIMPSON, está falando entusiasticamente]

SIMPSON - Ele a pegou, ele a pegou. Não, Gabi, você não pode desistir agora. Você conseguiu brigar com ele nas cavernas, brigou com ele nas planícies. É isso! Nas planícies! Aviões, perseguição aérea. O rosto dela denota terror! Sr. Benson, Sr. Benson! [acordando-o] Ela o matou! [chorando]

BENSON - [abraçando-a] Ora, ora, srta. Simpson, está tudo bem. Isso deve ser dito em sua defesa, você bebeu demais. De qualquer maneira, ele provocou isso, alimentando-a com essa intoxicante bebida, deixando-a bêbada.

SIMPSON - O que, aliás, não está nem um pouco.

BENSON - É claro que não.

SIMPSON - Mas quando eu penso naquele pobrezinho daquele cavalo, apanhando com aquele chicote terrível. Pensando bem, acho que ela teve uma parcela de culpa em tudo.

BENSON - Que foi que disse?

SIMPSON - Não importa o que ele ia fazer com ela. Eu não entendo por que eu estava fazendo tanta confusão. Ele não se parecia com um tipo de vampiro, não. Eu acho até que ele era muito atraente.

BENSON - Srta. Simpson, eu acho que seria uma excelente idéia se fosse para a cama dormir um pouco.

SIMPSON - Mas e o senhor?

BENSON - Eu vou pensar. Agora, tenha a bondade de recolher-se e deitar-se.

SIMPSON - Bom, talvez se eu dormir algumas horas... Mas e se o senhor tiver alguma idéia e eu sei que o senhor vai ter, prometa que vai me acordar.

BENSON - Combinado.

SIMPSON - Promete?

BENSON - Prometo. Boa noite.

[SIMPSON sobe a escada e sai de cena. BENSON caminha até o telefone e tira-o do gancho.]

BENSON - Telefonista, eu queria uma chamada para o sr. Alex Meyerheim em Cannes. Bem, como é 1h30, você deve encontrá-lo no cassino. Benson, Richard. 

TELEFONISTA- [V.O.] BENSON chamando. 

BENSON - Estou aguardando. [começa a datilografar] "Caro Alex, é meu desagradável dever informar-lhe que 'A garota que Roubou a Torre Eiffel' não irá acontecer. Não há sentido em você vir até Paris para ler o texto porque não há texto. E, como eu posso perceber, não haverá nenhum." Telefonista, por favor, tente achá-lo na sala de jogos, na mesa maior.

[SIMPSON surge, de camisola, para pegar a capa da gaiola do pássaro, deixando BENSON levemente inebriado com sua presença.]

SIMPSON - Me desculpe, eu esqueci de cobrir Richelieu. Ah, Sr. Benson...

[Dissolve.]


INT - DIA - QUARTO HOTEL BENSON

[BENSON enfileira papéis pela sala de forma ordenada. SIMPSON surge e o observa.]

SIMPSON - E eles dançam e dançam e dançam.

BENSON - Infelizmente, srta. Simpson, não estamos fazendo um musical.

SIMPSON - Sr. Benson, o senhor redigiu todas essas páginas ontem à noite, tudo sozinho?

BENSON - Enquanto uns de nós dormiam confortavelmente em suas camas, outros cidadãos mais produtivos trabalhavam extenuadamente no campo das belas artes. Eu só me ressinto que você, a jovem escritora, não estivesse presente para observar com seus grandes olhos mágicos um profissional da antiga em ação. Nessas altas horas eu fui como DiMaggio voltando e voltando e voltando para fazer um ponto. [acerta uma bolinha de papel no cesto de lixo] Eu fui um grande Moretti em Sevilha indo com seus chifres para espetar o inimigo e perdendo, graças a Deus, porque eu não suporto ver sangue. Enfim, Pablo Picasso adicionando cegamente o terceiro olho ao retrato de sua amada. Como é que se soletra "ingênua"?

SIMPSON - I-N-G-Ê-N-U-A.

BENSON - Eu estava com medo disso. Além dos três metros e meio de páginas que eu escrevi ontem à noite, eu descobri alguns erros nas páginas iniciais que tiveram de ser corrigidos. Relativos basicamente ao personagem Rick. Descobri que, num momento de insegurança, subestimei o brilhantismo desse homem. Ele não é só um arrombador de cofres, mas um mestre do crime procurado pela polícia de três continentes. O intrincado esquema foi dolorosamente arquitetado passo-a-passo durante um ano pelo próprio Rick. Os dois outros personagens são subalternos, então, isso nos remete a onde estávamos. A essa hora, Rick e Gabi já haviam devorado um maravilhoso almoço e já são quase 4 horas, momento da chegada do carro.

SIMPSON - Página 14.

BENSON - Agora sente-se [ela senta-se] e segure-se bem. Agora vem a troca da troca. Em um minuto e meio você e o público ficarão chocados ao perceberem que foram enganados. As coisas não são como aparentam ser, não mesmo. De fato, a atuação como um todo é completamente revestida.

SIMPSON - [maravilhada] Sr. Benson.

BENSON - Srta. Simpson, não fique ai sentada me observando em muda adoração, leia o texto.

SIMPSON - [em voz alta] "Rick e Gabi estão sentados com os copos de brandy à sua frente, os grandes olhos mágicos dela estão radiantes."


EXT. DIA - RESTAURANTE

GABI - Não me recordo de ter tido um almoço tão maravilhoso! Não sei como agradecer.

RICK - Por favor... E agora, se me permite, vou lhe contar os planos para o resto da tarde.

GABI - O resto da tarde?

RICK - Exatamente. Eu pedi que meu carro com o chofer estivesse aqui às quatro horas para fazer um tour por Paris e vermos as festividades. Uma parada rápida no meu escritório para pegar um negócio e então direto à festa que está sendo organizada em minha honra no restaurante da Torre Eiffel.

[Garçom surge.]

GARÇOM- Com licença, o senhor é o Rick?

RICK - Sim.

GARÇOM- Ah,o seu chofer está aqui. Ele disse que tem uma importante mensagem para o senhor.

RICK - Ah, obrigado. [a Gabi] Um instantinho, por favor.

[Rick caminha até o carro, François o espera]

FRANÇOIS - São quase quatro horas.

RICK - Eu sei, eu sei.

FRANÇOIS - O que é que há? Você ficou maluco, é? Trazer uma garota conosco num trabalho como esse, rapaz?

RICK - No nosso acordo, meu caro François, é suposto que você dirija e eu planeje.

FRANÇOIS - Mas... é que... Pra que você precisa de uma garota nesse trabalho?

RICK - A habilidade para improvisar com brilhantismo num momento de crise é uma das razões porque eu sou um profissional bem sucedido. Se olhar para sua esquerda, bem atrás de forma mais casual possível, [François vira-se e o vê. Close em Gillet] você vai ver o inseto Gillet tentando estupidamente se esconder atrás do jornal de ontem.

FRANÇOIS - O que estará fazendo em Paris? Você acha que ele suspeita de alguma coisa?

RICK - É claro que não. Eu sempre estou um passo a frente dele. Por que acha que eu peguei a garota?

FRANÇOIS - Bom, por causa daqueles grandes olhos mágicos, por isso.

RICK - Por isso também, mas o fato é que eu a peguei para colocar nosso inspetor fora de cena. Nunca em sua vasta imaginação ele vai pensar que o bem pago e bem sucedido Rick seria tão bobo de levar uma jovem com ele num trabalho, entretanto é exatamente o que eu vou fazer. Ela é um álibi perfeito. Eu o vejo no carro em um minuto.

[Rick vai até a mesa onde Gabi o espera e paga o almoço. Ela acaba de guardar o batom em sua bolsa. Caminham ambos em direção a mesa onde Gillet tentava se esconder.]

RICK - Meu caro Gillet, nossos caminhos se cruzam novamente.

GILLET - Meu caro Rick, que extraordinária coincidência!

[Gabi chega até eles]

RICK - [a ela] Meu amigo, sr. Gillet, ele é curiosamente um dos meus associados.

[Gabi estende sua mão em silêncio a ele, que a beija ao mesmo tempo em que o guardanapo cai no chão. Ela o pega e o entrega a ele.]

GILLET - Encantado. Qualquer amigo de Rick é também amigo meu.

RICK - Ah, por favor, sente-se e desfrute seu almoço. E tome muito cuidado com as calorias.

[Rick e Gabi se despedem e vão até o carro. Entram enquanto Gillet os observa e sorri confiante. Philip fica de pé à frente da mesa de Gillet, de costas para a câmera]

GILLET - Esse momento merece ser saboreado. Por três longos anos venho esperando e agora finalmente o brilhante e bem pago profissional caiu na armadilha, hêhê. O que não sabe o pobre Rick é que a garota é nossa. Você tem certeza de que ele não suspeitou?

PHILIP - [indo para o lado de Gillet] Inspetor, a minha imitação de ator metódico foi impecável. Eu representei o papel internamente, claro, indicando todos os elementos básicos desse profundo e quase lunático narcisismo. A falta de delicadeza pessoal, o vocabulário falho... [sentando-se] Puxa, foi... Não houve falhas, eu fui brilhante. Eu cheguei numa motocicleta vestindo umas calças desbotadas, óculos...

GILLET- [interrompendo-o] Eu te imploro, meu caro Philip, por favor, não se deixe levar por tanto orgulho. Deixe-me lembrá-lo que você não é o astro desse drama, mas um personagem de suporte e muito sem importância, diga-se. Se a vida, como o teatro, viesse unida de um programa, a sua referência bem embaixo da planilha em letras miúdas, seria simplesmente "segundo policial". Como eu estava dizendo, o que ele não sabe é que a garota é nossa.

PHILIP - Mas será ela confiável? Uma criatura de rua com um gravador de polícia tão grande quanto seu braço?

GILLET- Nada acontecerá de errado, meu caro Philip. Existe uma pequena fissura na armadura de Rick: um bonito rosto. De uma maneira ou de outra, usando seu talento, a garota vai extrair dele o detalhe do plano, muito importante.

PHILIP - O plano... Mas, eles não deveriam ser seguidos?

GILLET- Não teria sentido. Rick é um mestre nas ruas de Paris, não há um policial vivo que consiga ficar na sua pista se quiser driblá-lo. Não, ficarei aqui e farei um ótimo almoço, todo cozinhado é claro, neste notável óleo emagrecedor.

PHILIP - Maravilhoso.

GILLET- Eventualmente, tendo sucedido meu almoço com alguns digestivos e uma rápida caminhada, reencontrarei meu amigo à noite para o clímax dessa aventura na... [abre o guardanapo que ela lhe dera]

PHILIP - Torre Eiffel! Brilhante, inspetor, brilhante!


INT/ EXT - DIA - CARRO

[PG da avenida, do carro. Plano interno. Rick e Gabi estão o banco de trás. Aparece apenas o ombro de François.]

RICK - Para o estúdio, por favor.

GABI - Estúdio?

RICK - Eu já lhe disse, eu tenho que parar um momento em meu trabalho para pegar uma coisa. Você já esteve antes num estúdio de cinema?

GABI - Não. Você trabalha com cinema?

RICK - De certa forma, sim. O estúdio é particularmente maravilhoso em dia de feriado. Vazio. Enormes palcos completamente desertos, como a véspera do Natal, sem nenhuma pessoa em ação.

[Externa. Plano geral do portão abrindo e o carro adentrando a propriedade. Gabi e Rick saem do carro e ele diz ao motorista]

RICK - Espere aqui, eu não vou demorar.

[Dissolve. Reaparecem num dos estúdios. Gabi perambulando, encantada. Rick está perto de um cofre]

GABI - Ah, que simpático. Eu não entendo, você é ator, escritor, produtor, diretor?

RICK - Nada tão criativo quanto essas profissões. Meu interesse no cinema é puramente financeiro.

GABI - Puxa, nem sei como dizer como é excitante para mim, eu simplesmente adoro cinema. Não esses filmes terríveis de vanguarda onde nada acontece, é claro. Eu gosto é de westerns, bons filmes fora de moda, com grandes viradas e viradas das viradas, essas coisas.

RICK - Você tem uma lixa fina na sua bolsa? Qualquer coisa para afiar as unhas?

GABI - [mexe na bolsa] Acho que sim. [entrega a lixa a ele]

RICK - Muito obrigado.

GABI - Eu gosto mesmo é de roubos bem complicados, você não gosta?

RICK - Absolutamente.

GABI - Eu sei que pode parecer infantil, mas é que depois de filmes de assaltos, acho que prefiro filmes de terror. Não vai acreditar, mas quando eu era menina, era apaixonada pelo Drácula. Minha mãe ficava tão chateada. Ela ficava me achando doente, sabe? Costumava dizer: "Esse vampiro tem idade suficiente para ser seu pai, menina!" Aliás, eles se parecem muito.

RICK - [fechando o cofre] Estou satisfeito. Não que seu pai se pareça com o Drácula.

GABI - Ah, mas ele se parecia. Não depois de colocar os dentes.

RICK - Mas então se interessa por filmes, assim temos duas coisas em comum: cinema e girafas.

GABI - Girafas e cinema. É um mundo pequeno, não acha?

[Rick vê o rádio que ela deixa transparecer, por descuido. Ele tenta pegar o rádio]

RICK - Me deixe ver isso!

GABI - Não, não, por favor, está me machucando...

RICK - O batom! Esteve escrevendo com ele! O guardanapo que deu a Gillet, o que havia nele? [começam a correr em círculos] O que havia nele?

[B.G.: de ação/ Continua a perseguição por dentro do estúdio, até que chegam a OUTRO CENÁRIO, onde Rick encurrala Gabi. Ela lhe aponta um revólver]

GABI - Pare, Rick! Eu vou atirar, juro que vou.



INT - DIA - QUARTO HOTEL BENSON

[Mesmas posições]

SIMPSON - Sr. Benson, o que acontece depois?

BENSON - Não sei, não sei, eu só cheguei até aqui.

SIMPSON - Sr. Benson, sabe o que eu acho? Eu acho que vai haver uma outra troca da troca da troca da troca da troca da troca... Eu pensei que gostasse de fazer cinema, mas quando eu trabalhei com Todd Russell, nunca foi assim. Eu me pergunto sobre essas viradas de troca, de troca, de troca eu acho que ele não conhecia, não. Isso teria mudado toda a sua concepção de vida. De repente, eles não estariam só jogando um jogo de palavras, bem como outros jogos. Eu devo admitir, a mente dá voltas. Entretanto, você sabe o que eu acho?

BENSON - Eu sei. Você acha que ela não é realmente uma garota de rua com um gravador de polícia tão grande quanto seu braço. Você acha que ela é agente da Inteligência Americana. Bem, srta. Simpson, acontece que está enganada. A nossa Gabi parece ser um personagem da Literatura popular o mais confiável e leal e que você realmente não pode deixar de colocar, mesmo que escreva mal. A prostituta com um coração de ouro. Não, isto realmente você não pode deixar de fazer. O melhor é o Frankenstein. Com certeza, alguém que cria ou refaz outro humano e ainda cai de amores por ele ou o destrói. Ele pode ir para ambos os lados, isso é o que lhe dá tanta flexibilidade. srta. Simpson, já percebeu que "Frankenstein" e "My Fair Lady" são a mesma estória? Uma termina alegremente e a outra, não. Pense sobre isso por um instante. [chegando perto dela] Seu cheiro está maravilhoso.

SIMPSON - É o óleo de banho. Quando tomei banho hoje de manhã eu botei um pouco de óleo de banho. Só umas gotinhas, é claro.

BENSON - E eu agradeço muito por isso, por beneficiar a nós dois. Onde nós estávamos?

[SIMPSON levanta-se bruscamente]

SIMPSON - Bang, bang, bang. Nós estávamos aqui, ou melhor, o senhor estava aqui. Ela estava em pé com a arma na mão e ele ia em direção a ela. Eu não entendo como "My Fair Lady" e "Frankenstein" são a mesa coisa. [pensando] Ah, eu entendo sim. O professor Higgins criou Eliza e o Dr. Frankenstein criou o monstro. É claro, é evidente.

BENSON - Mas não diga a ninguém, estou guardando para um livro sobre a arte do cinema. Ele a caçou pela selva e tudo o mais e blablablá e passada a banheira e... Se pensa que vai ver um filme de Richard Benson sem uma banheira, você está fora de si. E dentro do quarto, ela puxa a arma e blablablá blablablá, e a menina querida, de grandes olhos mágicos, de banho de óleo perfumado é onde estamos. Lentamente Rick continua em sua direção...