5.7.09

ENCAIXOTANDO HELENA

Logo em sua estréia em longas, Jennifer Lynch mostra que não é apenas a filhinha do grande e arrebatador David Lynch. Este "Boxing Helena" (USA 1993) não poderia ser mais espantoso. Espantoso em seu tema, que nos faz mergulhar na obsessão de um homem que não percebe que tem tudo; espantoso na fotografia, belíssima em seus tons escurecidos; espantoso na fluidez dos diálogos, esparsos, mas efetivos; espantoso na agilidade com que cria os climas certos para cada sequência; espantoso na forma pela qual nos embriaga sem nem mesmo usar muitos sons de fundo.
Pena ter recebido críticas tão negativas na época em que foi lançado. A direção da Lynch é primorosa e Julian Sands ("O Hotel de Um Milhão de Dólares" e "Time Code") está impecável e magistral como o talentoso e descoraçonado médico, Nicholas Cavanaugh.
Isso sem mencionar Sherilyn Fenn ("Um Toque de Sedução e "Um Assassinato na Estrada") em seu melhor papel. Ela mesma, que fez também uma participação em "Coração Selvagem" e na sensacional série "Twin Peaks", ambos do David Lynch e que depois não fez mais nada de útil.



INT. NOITE - FESTA NA CASA DOS PAIS DE NICK

BG: Jazz / Menino (Nick) abre a porta e vê um homem (pai dele) sentado a uma mesa, escrevendo.

NICK - Pai?

PAI - Agora não, Nicholas. Estou a trabalhar.

Plongeé em Nick. Outro homem fala a Nick.

HOMEM - O teu pai está bastante ocupado, hem? Sabes, ele tem sido impecável para ti e para a tua mãe, e deu-te esta bela casa. E todos sabemos que seguirás as seus passos no hospital, certo? Lembras-te do lema da família? "A persistência e o trabalho duro conceder-te-ão tudo o que quiseres." Qual é o Lema?

NICK - "Trabalho duro..."

HOMEM - É isso mesmo rapaz... "Trabalho Duro."

O HOMEM sai de cena. Duas mulheres comentam.

MULHER #1 - De quem é aquele menino?

MULHER #2 - É filho da Mary.

MULHER #1 - Curioso. Ela nunca mencionou que tinha filhos.

NICK - Mãe?

LOIRA misteriosa (Maron) flertando com um desconhecido.


CEMITÉRIO - EXT. DIA

Plano de dentro da cova, enquanto o caixão vai descendo.

PADRE (V.O.) - Confiamos a Marion ao Deus Todo-Poderoso. E entregamos o seu corpo à terra. Compreendemos a incerteza da nossa vida na terra. Foi-nos dado só um punhado de dias. E o nosso período de vida não é nada, aos Teus olhos. Toda a carne é como a relva. E toda a sua beleza é como uma flor do campo. Mesmo no vale da sombra da morte, estais conosco. Oh senhor, deixai-nos saber o nosso fim e o número dos nossos dias para que possamos saber o quão rápida a vida é. Ouve a nossa prece e também o nosso choro. Não sejais surdo aos nossos lamentos porque vivemos como estranhos perante Ti.

Nick caminha em direção a seu carro. Entra, põe os óculos e fala ao telefone:

NICK - Fala o dr. Cavanaugh. (ouve) Sim, qual foi o objeto do ferimento? (ouve) O sangue está circulando na mão? (ouve) Chego aí em três minutos.
Liga o carro e sai.


CORREDOR DO HOSPITAL

NICK e outro médico andando apressadamente. O enfermeiro que está a seu lado carrega uma prancheta.

ENFERMEIRO - Nick! O paciente é um rapaz de 11 anos. A sua mão esquerda ia sendo completamente decepada do pulso. Os ligamentos internos ainda estão intactos. A artéria e os nervos do pulso estão completamente rasgados.

NICK - O microscópio está pronto?

ENFERMEIRO - Está.

NICK - Continue.

ENFERMEIRO - A pressão é de 11 e meio por 8, pulso 78 regular.

ENFERMEIRA (a Alan) - O dr. Cavanaugh já chegou e vai assumir. Ordens do dr. Pollin.

Alan (a NICK) - Achei que o enterro fosse hoje.

NICK - O que morreu, morreu, Alan. Com licença. (entrando na sala de cirurgia, falando a equipe) Já deu-lhe antibiótico?

ENFERMEIRA - Sim.

NICK - Ótimo.


RECEPÇÃO DO HOSPITAL

NICK saindo da sala de cirurgia e tirando a capa.

NICK - Oi, Daniele.

DANIELE - Olá, doutor.

NICK - Os pais do garoto já chegaram?

DANIELE - Já. São o senhor e senhora Bern. Eles estão na sala de espera. A senhora Bern está arrasada.

NICK - Vamos ver se conseguimos dar boas notícias.

NICK caminha em direção a sala de espera.


ENTRADA CASA NICK

Plano de dentro do carro seguindo pela adorável ruela do jardim principal. NICK dirigindo. No outro take, mostra o carro vindo de frente. NICK sai do carro. No outro take, a câmera está dentro da casa, NICK está entrando. Ele entra e vai caminhando lentamente pela suntuosa morada. Sobe as escadas, fecha os olhos, passa a mão pelo corrimão.

A LOIRA da primeira cena, falando a um homem que sai de seu quarto, sorrindo.

LOIRA (V.O.) - Tchau.

HOMEM (a Nick, ao passar por este) - Você tem companhia, velho.

Ela senta-se no corrimão, apenas com calcinha e um penhoar aberto.

LOIRA - Estava me espionando, não estava?

NICK abre os olhos.


BAR

BG: "It ain't over until it's over", do Lenny Kravitz / Laurence está sentado ao balcão. NICK vai até ele.

NICK - Laurence.

LAWRENCE - Eu já pedi.

NICK (sentando-se ao lado dele) Obrigado.

LAWRENCE - Um brinde a mais uma que deu certo. (brindam) Ouvi dizer que fez logo uma cirurgia hoje.

NICK - Ah, eu tinha gente boa me ajudando.

LAWRENCE - É, as pessoas estão falando disso e Pollin está extasiado.

NICK - Estou feliz que o garotinho vai ficar bom.

NICK vê HELENA no bar, a alguns metros.

NICK - Nós temos que sair daqui. (LAWRENCE olha e avista HELENA flertando com um homem) Lawrence, vamos lá. Ela está aqui. Eu vejo você lá fora. (levantando-se)

GARÇONETE - Mais alguma coisa, senhor?

LAWRENCE - A conta.

GARÇONETE - Aqui.

NICK caminha até um orelhão e telefona.

NICK - Anne, eu... Eu fiquei com a casa da mamãe. Vou me mudar para lá. (ouve por um instante) Frango está ótimo. Eu vou ter que passar no meu apartamento antes e pegar umas coisas. Se você chegar lá antes de mim, tem uma chave embaixo do capacho. (ouve) Eu também.


CALÇADA, PERTO DE UM CARRO

LAWRENCE está pegando a chave com o manobrista.

NICK - Você acha que ela pensa em mim?

LAWRENCE - Faz diferença?

NICK - Não. (pausa) Obrigado pela bebida, Lawrence.

LAWRENCE - Que é isso...

NICK - Eu parei no fim da rua.

LAWRENCE - Até mais tarde.

NICK sai de cena. LAWRENCE permanece.


CASA DO NICK

ANNE está tirando as coisas de umas sacolas e colocando-as sobre a mesa.

ANNE - Oi, amor, acabei de chegar também.

NICK - Oi.

ANNE - Olá.

NICK - Eu pensei em desfazer as malas e dar uma corrida antes de comer.

ANNE - Tá. Gosta de vinho tinto?

NICK - Perfeito.

ANNE continua o que estava fazendo. NICK sai de cena.


RUA - NOITE 

NICK correndo, vindo de frente para a câmera. Ele pára ao ver um carro estacionado a frente da casa de HELENA. E fica apreensivo. Vai até aporta, mas hesita em bater. Olha para a árvore e sobe nela. BG: "Woman in chains", do Tears for Fears. Ele vê HELENA servindo-se de uma bebida. Ela tira a roupa. Ela vai até a cama e começa a beijar RAY. NICK observa a cena, angustiado.
BG: sombrio. NICK correndo, foco no rosto dele, profundamente angustiado. Intercalam-se essas com cenas de HELENA transando com RAY. NICK grita de desespero. Pára num orelhão. A câmera gira em torno da cabine.

NICK - Olha, não importa onde eu estou. Lawrence, me diz como vou fazê-la voltar?

LAWRENCE (V.O.) Nick, você estava bem hoje de manhã, o que aconteceu?

NICK - Não aconteceu nada, eu já disse: eu a vi.

LAWRENCE (V.O.) Então não a veja de novo. Você não viu como levou um ano para esquecê-la? Não ligue para ela, não mande flores, Nick. Lembre-se da Anne.

(Take do rosto de HELENA)

LAWRENCE - Nick?

NICK - Não se preocupe comigo, Lawrence.

LAWRENCE (V.O.) - Tem certeza de que não quer se encontrar em algum lugar?

NICK - Eu tenho um compromisso para o jantar, obrigado.

LAWRENCE (V.O.) - Se cuida, hein.

NICK - Tchau, Lawrence. (desliga e suspira) Ela é tão bonita.


FLORICULTURA

NICK está escrevendo um bilhete. Focaliza no papel, letra linda, por sinal.

NICK - Obrigada. (entregando o bilhete à moça da floricultura)

FLORISTA - De nada, dr. Cavanaugh. Quer que ponha na sua conta?

NICK - Quero.

FLORISTA - Boa noite.


DENTRO DO CARRO
NICK entra no carro.

Cena da ANNE tirando a mesa tristemente. Ela apaga as velas e...

NICK acordando. Percebe que cochilou dentro do carro.
NICK - Ah, meu Deus, a Anne!

NICK entrando na casa. ANNE deitada, dormindo no sofá.

NICK (fala baixo) Anne. (cobre-a com um lençol)


NO OUTRO CÔMODO

NICK ao telefone, mas ainda não discou.

NICK - Alô, Helena, é o Nick. Como você está? (repete, treinando) Isso.

Disca o número.

NICK - 555 (repete para si mesmo) Alô, Helena, é o Nick. Como você está?