6.7.09

QUANDO PARIS ALUCINA

Título original: "Paris - When It Sizzles" USA 1964
Comédia romântica, dirigida por Richard Quine, com roteiro baseado em história de Julien Duviviver e Henri Jeanson.

CORTA P/
Opa! Comédia romântica?
Sim, mas não é o que parece. Eis a última boa comédia dos tempos áureos do cinema americano.
Mais um filme-texto, do tipo que tanto aprecio. Contém poucas externas (a não ser no metafilme); tem vários e apetitosos minimonólogos bensonescos; diálogos ágeis e espirituosos; um clima encantador; deliciosas e intermináveis alocuções; atuações resplandecentes e gostosamente exageradas, como no antigo teatro grego.
Foi o filme que Audrey Hepburn mais gostou de fazer e certamente o mais interessante que ela fez.
William Holden está mais do que encantador nesta película, e seu personagem, o roteirista procrastinador Richard Benson, esbanja charme do começo ao fim.
Por que diabo não se fazem mais comédias assim, hein?


EXT. DIA - SOL

GPG de uma ilha. Meyerheim ditando e desenhando nas costas de uma mulher de biquini. Outra garota de biquini escreve num bloco.

MEYERHEIM - "Memorandum à Paramount Pictures,
Hollywood, Califórnia.
De: Alexander Meyerheim.
Assunto: A última produção.
Cavalheiros, enquanto se sentam nos vossos confortáveis gabinetes, nós aqui... nas trincheiras, fazemos bom progresso.
Quanto às vossas ansiedades acerca do roteiro, falei com o autor em Paris. Assegurou-me ter já 138 gloriosas páginas a serem dactilografadas.
Juntamo-nos em Paris no Domingo.
Ponto final.
Parágrafo."

MEYERHEIM - Cavalheiros, o sucesso é inevitável. É uma produção de Alexander Meyerheim de uma história e roteiro originais de Richard BENSON.

A mulher em quem ele desenhava levanta-se exaltada.

MULHER - Richard Benson?

MEYERHEIM - Conhece-o, meu anjo?

MULHER - Se conheço? Detesto-o!

MEYERHEIM - Richard Benson... Parece ter facetas que conhece melhor que eu. Nem imagino como acha tempo para escrever.

HOMEM - lnfelizmente teve tempo de me escrever um roteiro. Acharam as últimas dez páginas ao largo de Malibu, numa garrafa de vodka.

MEYERHEIM - Envie a Benson o telegrama do costume. O Richard assegura-me que se tornou abstémio.


EXT. DIA - SOL

GPG Torre Eiffell. BENSON deitado ao sol, bebendo em sua varanda.
Cenas num parque e mais cenas das ruas. Numa das cenas surge SIMPSON, andando com seu pássaro. Ela entra num prédio e entra no elevador. Ao chegar ao apartamento de BENSON, lê as placas: "NÃO lNCOMODAR" e "REFERE-SE A VOUS!" "E A VOUS TAMBÉM! MERCI RB"

BENSON já saiu do terraço e adentrou a sala de estar. SIMPSON toca a campainha.

BENSON - Está aberta. Entre.

SIMPSON entra.

BENSON - Sim?

SIMPSON - Sr. Benson?

Ele está vestindo-se.

BENSON - É a jovem dactilógrafa?

SIMPSON - Sou.

BENSON - Para um relacionamento feliz e harmonioso, peço-lhe, nunca responda com perguntas. Fui claro?

SIMPSON - Fiz isso?

BENSON - Lá está de novo, respondendo com perguntas.

SIMPSON - O meu 'sim' foi uma pergunta, inferida, claro. Sabe o que é inferido e pressuposto? Não é uma pergunta?

BENSON - É. Respondeu à pergunta com outra.

SIMPSON - lnferir é indicar sem dizer aberta ou directamente, pressupor é concluir a partir do conhecido ou suposto. Chamo-me Gabrielle SIMPSON.

BENSON - Isso é um pássaro?

SIMPSON - Como este trabalho vai durar dias, não tinha ninguém com quem o deixar.

BENSON - Bem cá estamos. O escritório é ali, eu vivo aqui em cima, o terraço é lá fora. Aquele mostrengo proeminente no horizonte é a Torre Eiffel. Mandei pô-la ali para me situar melhor. Se a ofende, mandarei removê-la. O seu quarto é por aqui. É contíguo, o que, não duvido, lhe trará à mente conotações sinistras.

SIMPSON - De modo algum...

BENSON - Ponha-as de parte. Dava-lhe um quarto lá ao fundo, mas tenho a choça cheia. Dia da Bastilha, sabe como é.

SIMPSON - Deixe. Trabalhei com um autor americano que só escrevia na banheira. Habituei-me a tudo.

BENSON - Pode desfazer a mala. (pausa) Na banheira?

SIMPSON - Sim. Ofereci-lhe gel para o banho e demo-nos como peixes na água.

BENSON - Entendo. Devo subentender que o pássaro se chama Richelieu?

SIMPSON - lnferir, creio eu, e não subentender.

BENSON - Como peixe na água. Metáfora interessante. Chama-lhe Richelieu porque queria um cardeal?

SIMPSON - (rindo) Que engraçado.

BENSON - Não, não é. É o que faz ser um espirituoso internacional, que sou. Não posso parar.

SIMPSON - Estou tão feliz com este trabalho, Sr. Benson. E por poder trabalhar com um guionista da sua estatura. lnteresso-me por cinema. Decerto que aprenderei muito.

BENSON - Obrigado.

SIMPSON - Trabalhei com Roger Roussin, o realizador da Nova Vaga. Conhece-o?

BENSON - Eu sou mais da Velha Vaga.

SIMPSON - O filme é interessante. Muito avant-garde. É sobre umas pessoas, numa festa, que decidem não jogar Scrabble. Chama-se "O Jogo de Scrabble Não Terá Lugar". O próximo será sobre uma moça que não quer festa de anos. Soprar Velas É Mentira. Roger acredita que o importante é o que não se vê. O seu filme já tem título?

BENSON - Claro. "A garota Que Roubou A Torre Eiffel".

SIMPSON - "A garota Que Roubou A Torre Eiffel". Soa fascinante. O título é simbólico? Ela não rouba mesmo a Torre Eiffel. Rouba? Qual é a história?

BENSON - É uma tragédia romântica com acção e suspense. Com muita comédia, claro. E, lá no fundo, um substrato de comentário social.

SIMPSON - Bem, se me mostrar as páginas que escreveu poderei avaliar o volume de trabalho.

BENSON -  As páginas estão aqui mesmo.

BENSON (lendo e enfileirando os papéis em branco) - Uma produção de Alexander Meyerheim. "A garota Que Roubou A Torre Eiffel" História e roteiro originais de Richard Benson. Aqui, com uma página ou duas de cenas de abertura filmadas, talvez, dum helicóptero, um moço e uma moça conhecem-se.

SIMPSON - Mas, Sr. Benson...

BENSON - Após conversa miúda, tipo 'quem-sou-quem-és', que escrevo muito bem, sente-se uma atracção inconsciente entre os dois. lndicando aos espectadores os trémulos começos dum amor. De seguida, conflito! Adivinha-se pela música, quão plena de perigo é toda a situação. E agora a primeira permuta. O público engole em seco ao ver que foram enganados. As coisas não são o que parecem. De modo algum. Na verdade, a situação reverte-se por completo, o que envolve uma magnífica e engenhosa permuta... à permuta. Atônitos com o súbito desenrolar dos acontecimentos, o rapaz e a garota constatam o quanto estão errados. Nesse ponto, a música retoma um tom fatídico. Dão-se conta do perigo em que estão, e a perseguição começa! Derrapagens, telhados, figurinhas ao longe, correndo pela cidade aterrorizada. De súbito, num beco deserto, sentado numa lata de lixo, o pêlo emaranhado e molhado da chuva, e em primeiro plano, o gato! Ao aproximarmo-nos gradualmente do clímax, a música ascende. E ali, totalmente inconscientes da chuva torrencial que lhes cai em cima, caem, feliz e ternamente, nos braços um do outro. E, enquanto os espectadores se babam de prazer sexual subliminal, as duas enormes e exorbitantemente pagas cabeças aproximam-se para o inevitável momento final. O que agita o solo, paga a renda, enche cinemas, e vende pipocas... O beijo final.

BENSON e SIMPSON beijam-se, sentados na escada.

BENSON - A imagem desvanece. Fim.

BENSON a solta e levanta-se. SIMPSON permanece sem ação, surpresa.

BENSON - Aqui está. 138 páginas. Porquê mais longo? Teríamos de o cortar.

SIMPSON - Sr. Benson...

BENSON - Sim?

SIMPSON - O roteiro, quando tem que estar acabado?

BENSON - Bem, vejamos, hoje é sexta-feira. O meu amigo, patrono e produtor, Sr. Alexander Meyerheim chega a Paris, de Cannes, às dez horas da manhã de domingo, que calha ser o Dia da Bastilha. Perfeito! Ás 10:01 damos-lhe o roteiro acabado e iremos celebrar. Beber champanhe, dançar nas ruas, fazer o que se faz a 14 de Julho.

SIMPSON - Muito amável, mas tenho um encontro. Ainda não escreveu nada?

BENSON - Tem um encontro?

SIMPSON - O filme inteiro tem que ser feito em dois dias?

BENSON - Menina Simpson, se não está à altura, diga-mo já. Posso arranjar outra pessoa.

SIMPSON - Não, não quis dizer isso. É apenas, bem, bastante invulgar, não é?

BENSON - Para mim, não.

SIMPSON - Mas tem pensado muito no filme?

BENSON - Não, não tenho.

SIMPSON - Então, que tem feito?

BENSON - O que qualquer escritor de garra americano faria, ou deveria fazer, nas primeiras 19 e tal semanas da comissão. Esqui aquático em St. Tropez, apanhar sol em Antibes, estudar Grego.

SIMPSON - Grego?

BENSON - Conheci uma aspirante a actriz, uma representante grega no festival de Cannes. E claro, umas semanas a desaprender Grego, o que envolveu carradas de vodka, uma ida imprevista às touradas de Madrid as quais, e felizmente, já que não suporto sangue, tinham seguido há muito para Sevilha. Nas semanas 17 e 18 estive no casino de Monte Carlo, a tentar, insensatamente, ganhar dinheiro suficiente para comprar o meu contrato, que vale $5.000 à semana, ao meu amigo, empregador e patrono, Sr. Alexander Meyerheim, para não ter de escrever o filme. Tome nota. Para o manual sobre guiões que um dia escreverei, nunca jogar no 13, 31 e cantos respectivos por muito tempo e com quantias consideráveis. Não resulta. Agora, tenho de mostrar resultados. Comecemos? Uma produção de Alexander Meyerheim. Aspas, reticências. A garota Que Roubou A Torre Eiffel. Gosta do título?

SIMPSON - Sim, é intrigante.

BENSON - Também intrigou Meyerheim. Comprou-o, sem ver o roteiro.

BENSON passa a ditar. SIMPSON anota.

BENSON - História e roteiro originais de RICHARD BENSON. Página um. Acção. Exterior. Paris, naturalmente. Vejamos, noite ou dia? Dia. Começa-se... com uma imagem... da Torre Eiffel. Primeiro plano. Numa plataforma, solitária e ao vento, está uma misteriosa mulher de negro. Olha para o relógio. E vemos... Como raio hei-de saber? Mulher misteriosa de negro. Como caem os poderosos! O filme não pode ser tão óbvio, não podemos dar todas as informações tão cedo. [pensando] Certo. "Início. Exterior - Dia do Sagrado Coração", escreva isto. "Grand Palais". Ah, devemos fazer a audiência sentir o gosto, o cheiro da verdadeira Paris. Certo.


EXT. - DIA - RUA EM FRENTE A CHRISTIAN DIOR

[Carro parando, motorista sai, abre a porta para mulher, que também sai do carro... Tal qual BENSON narra]

BENSON - [off] "Exterior - Christian Dior. A câmera focaliza e agora vemos um Rolls-Royce parando ali." Espera um pouco, devemos colocar um... O motorista, todo de branco sai do carro e abre a porta. De dentro sai uma atriz belíssima, do tipo clássico como [pensando] Marlene Dietrich... e agora ela entra magistralmente na loja... 


INT. - DIA - QUARTO HOTEL BENSON

[BENSON, SIMPSON, MESMAS POSIÇÕES]

BENSON - Essa é a última cena que temos dela. Mas não faz muito sentido, Alex teria adorado isso. Ele poderia [a Simpson] Como é mesmo o seu nome?

SIMPSON - Gabrielle Simpson.

BENSON - Há quanto tempo está morando em Paris?

SIMPSON - Dois anos.

BENSON - E veio aqui para escrever.

SIMPSON - É, para isso também. Mas eu vim para... [arremata sorridente] Eu vim para viver.

BENSON - Viver... [pausa para pegar um copo] Se não se importa... Você estava dizendo que veio aqui para viver.

SIMPSON - É, passei os primeiros seis meses fazendo um estudo compreensivo sobre depravação.

BENSON - Está brincando?

SIMPSON - Sério. Jamais ia para cama antes das oito da manhã. Nem posso contar as inúmeras xícaras desse café preto e venenoso que eu devo ter consumido. Eu não bebia, então era mais difícil entrar no espírito da coisa. Realmente a depravação pode se tornar muito chata se você não fuma nem bebe, mas uma pessoa deve de fato tentar crescer.

BENSON - E esse rapaz com quem você tem um encontro no Dia da Bastilha é parte do processo de crescimento?

SIMPSON - Ah, não, ele é só um amigo. É um jovem ator muito esforçado.

BENSON - Um ator?! Ah, o tipo de relação desastrosa para quem está começando. Eu só espero que ele não seja um desses atores metódicos que pula palavras, murmura e hesita bastante, destruindo o ritmo impecável da prosa do autor.

SIMPSON - Ah, ele é um pouco dramático, mas muito engraçado.

BENSON - E você e esse atorzinho... O que vão fazer no Dia da Bastilha?

SIMPSON - Vamos passar o dia inteiro juntos, começando pelo café da manhã na lanchonete que frequentamos; depois vamos dançar de um extremo a outro de Paris; Ópera às cinco; vamos ver a troca da guarda, o canto da Marselhesa; vamos para Montmartre para um show de fogos com ceia e champanhe, enfim, viver!

BENSON - Você realmente gosta disso...

SIMPSON - De que?

BENSON - Vida.

SIMPSON - Ah, todas as manhãs, quando eu acordo e vejo que há um dia inteiro me esperando, eu viro uma caricatura.

(Pausa)

BENSON - Eu tenho uma idéia, a primeira que eu tenho em quatro meses. Não, não é verdade. Há poucas semanas eu tive a idéia de abandonar a bebida, mas não emplaquei. Mas esta poderá ser ótima, muito boa mesmo. Uma estória simples sobre uma parisiense simples e trabalhadora e como ela passa o 4 de julho. Todo o filme se passa em um só dia. E eu tenho dois dias para escrevê-lo.


EXT - DIA - RUA LOTADA, PRÓXIMA A LANCHONETE

BENSON - [off] "exterior de Paris", nossa estória começa na manhã do Dia da Bastilha. E todos os trompetes de Paris estão soando. Acima de um plano do Arco do Triunfo superpõe-se "Produção de Alexander Meyerheim". Corta para a Torre Eiffel, título principal: "A Garota que Roubou a Torre Eiffel"; os trompetes continuam na inevitável música do título. Segue-se então a interminável lista dos outros créditos dando conhecimento dos esforços dos outros membros da equipe aos quais gentilmente agradeço no meu discurso na Academia de Cinema [letreiro: pessoa pequena] E, ao soar dos instrumentos: "Texto original e roteiro: Richard Benson. Início de cena: Uma simples trabalhadora parisiense que se parece muito com você, senhorita Simpson, surge vinda de uma simples moradia parisiense e atravessa a praça através da multidão. Senta-se à uma mesa nesta pequena lanchonete. Com uma ansiosa premonição, aguarda a chegada de seu namorado, um ator."
 

INT - DIA - QUARTO HOTEL BENSON

[mesmas posições da cena 1]

BENSON - Agora eu acho que devemos descrevê-lo. Eu o vejo como uma pessoa curiosamente pouco atraente.

SIMPSON - Não, não, ele é muito bonitão, aliás, ele é um pouco parecido com [expressão sonhadora] Tony Curtis.

BENSON - Eu o vejo como um desses sussurrantes e hesitantes atores destinados apenas a papéis menores em substituições a personagens importantes e seu nome não é Philip, é Maurício.


EXT - DIA SOL - LANCHONETE

[A cena descrita por BENSON. PHILIP chega em sua motoca, desce e cumprimenta GABI. Atuações ainda mais exageradas, especialmente a de PHILIP, bem afetada]

PHILIP - Bom dia, neném.

GABI - Ai, querido, eu estou tão ansiosa que nem dormi um segundo a noite toda. Você gostou do meu vestido?

PHILIP - [sem olhar para ela] É engraçadinho.

GABI - Eu gostaria de saber se você acha ruim se, no lugar de um café da manhã tomarmos um champanhe aqui mesmo antes de começarmos.

PHILIP - Ah, escuta, nenê.

GABI - O que é, Maurício?

PHILIP - Esse negócio de Dia da Bastilha... Vamos ter que esfriar esse negócio um pouquinho, entendeu?

GABI - Mas, Maurício, eu não estou entendendo.

PHILIP - Escuta, veja bem, nenê, eu vou ter que cancelar. Veja o que aconteceu ontem à noite, quando eu estava fazendo uma cena na drogaria. Estava esperando por um expresso com um cara da cidade quando de repente esse cara de vanguarda entra e me diz que o seu nome é Roger Roussin e que ele está fazendo um filme sobre o Dia da Bastilha. [ainda mais afetado] "Não há dança nas ruas!"

GABI - "Não há dança nas ruas!"

PHILIP - No filme de Roger está chovendo... Não importa, ele me ofereceu a direção.

GABI - Ah, Maurício, estou tão feliz por você.

PHILIP - Nenê, eu vou ter que ir embora, estaremos gravando o dia todo dentro dos esgotos.

GABI - Eu entendo.

PHILIP - Sabe o que é, eu estou motorizado, eu posso te levar.

GABI - Não, obrigado, eu prefiro ir andando.

[Despedem-se]

PHILIP - Tchauzinho, tá. Até a próxima. 

BENSON - [off] Com um narcisismo quase lunático, peculiar à sua curiosa ocupação, Maurício, de maneira realmente afetada, monta na sua patinete motorizada. Nossa heroína é deixada angustiada e aflita e não percebe que agora sua condição é melhor do que a anterior.


INT - DIA - QUARTO HOTEL BENSON

[SIMPSON, parando de escrever, comenta num misto de tristeza e sutil indignação]

SIMPSON - Mas eles iam passar o dia inteiro juntos!

BENSON - Minha querida, você acaba de testemunhar a primeira mudança.

SIMPSON - Pode ser, mas Maurício jamais se comportaria assim. Além disso, o nome dele não é Maurício, é Philip.

BENSON [elegantemente ignorando-a] - Agora então, tendo se livrado com sucesso de seu namorado no feriado da Bastilha, evoluímos para assuntos importantes: o conflito.

SIMPSON - Conflito?

BENSON - Outro homem! A terceira posição obrigatória de um triângulo. O tal Rogê que você falou não te ensinou nada sobre roteiro de filmes?

SIMPSON - Hmm...

BENSON - "Então, por um momento Gabi senta-se..."

SIMPSON - [interrompendo-o] Gabi?

BENSON - Nós temos que chamá-la de algum nome. "Por um momento, Gabi senta-se ali. Uma figura solitária e patética. Mas sem que ela saiba, essa pequena cena de quebrar o coração foi testemunhada por... um misterioso desconhecido."

SIMPSON [entusiasticamente] - Um misterioso desconhecido! Que excitante!

BENSON - Srta. Simpson, antes que a senhorita deixe os confins deste despretensioso quarto de hotel, a minha intenção é mostrar-lhe como pode ser tão excitante um misterioso desconhecido, então eu suponho que tenhamos que descrevê-lo.

SIMPSON - Ah, sim, eu também acho.

BENSON - Ele é americano, é claro. Eu posso descrevê-lo melhor assim. [fica em frente a um espelho]


EXT - DIA - LANCHONETE

[BENSON, ou melhor, Rick, está dançando animadamente com Gabi]

BENSON - [off] Vejamos então o que mais. Eu o vejo como um homem realmente alto, bronzeado de sol, com um corpo tipo atlético, com um rosto severo, mas curiosamente sensível. [pausa] Pobre e triste criatura, não consegue imaginar que em poucos minutos ela e o público terão esquecido completamente esse bobo e estúpido Maurício ou Philip, ou seja, lá qual for seu nome. Nesse momento mágico, sua vida de fato começou. Ele a toma ternamente em seus braços e movendo-se com a graça e a agilidade um Fred Astaire, dança com ela através da multidão. 

RICK - Em exatamente dez segundos eu quero que você bata em meu rosto sem razão alguma para confiar em mim. Há alguma coisa sobre seus grandes olhos mágicos e eu sou... Bem, o nome não importa. Pense em mim como o número 1331 da Inteligência dos EUA.

GABI - [desacreditando-o] Isso só pode ser brincadeira.

[BENSON entrega um buquê a ela]

RICK - Se olhar de leve para sua esquerda, sem mexer com a cabeça, você verá naquela janela [close em todos os espiões]. No buquê de flores que eu acabo de lhe dar, há uma espécie de microfilme. Eu não posso lhe dizer o que é, é claro. Tudo o que posso lhe dizer é que se ele cair em mãos erradas, poderá significar o fim de nossa civilização atual. Chegou a hora de bater em mim o mais forte que puder.

[Ela o faz, a multidão começa a se dispersar, espiões se mostram, BENSON corre, enorme confusão.]

 
INT - DIA - QUARTO HOTEL BENSON

BENSON - Pare, pare! Espiões vestidos com sobretudos? Eu estou achando que me excedi, srta. Simpson. Volta tudo. 


EXTERIOR - DIA, SOL - LANCHONETE

BENSON - [OFF] Certo, isso nos leva de volta onde estávamos. Estávamos bem na hora de nos vermos livres do namorado dela no feriado da Bastilha. O rapaz e a moça se encontram e dançam, dançam, dançam...
 

INT - DIA - QUARTO HOTEL BENSON

SIMPSON - E dançam, e dançam, e dançam... Sr. Benson?

BENSON - Agora então o misterioso desconhecido... O que ele está fazendo? 

SIMPSON - Está tocando a campainha.

BENSON - [ignorando-a com a costumeira classe] Que tormento está causando esta profunda tristeza através de seus olhos?

[SIMPSON levanta-se e vai atender a porta. É um telegrama. Ela o pega, agradece, fecha a porta e volta ao posto.]

BENSON - Por que enquanto ainda nos fazemos perguntas não escuto meu pai para aprender a fazer alguma coisa útil?

SIMPSON - Chegou um telegrama. Você não vai abri-lo?

BENSON - Não, srta. Simpson, não vou abri-lo porque estou inteiramente crente do que ele diz. A razão pela qual eu sei o que ele diz é que nas últimas dezenove e meia semanas eu recebi 134 telegramas do senhor Alex Meyerheim e todos exatamente dizendo a mesma coisa. "Quando estará o texto do filme terminado?" Como é que ele espera que eu termine? Como é que ele espera que eu escreva se ele fica me chateando dessa maneira? Noite e dia, telegramas, mensagens, telefonemas! "Como foi o dia de hoje? Trabalhou bem?" Triiiimmmmm! "Quando é que o roteiro estará terminado?" Fala de homens usando sobretudo, me espiona sempre, seu pessoal está em todos os lugares. Pelo que eu sei você também pode ser um deles, hein?

SIMPSON - [indignada] Sr. Benson!

BENSON - Ah, me desculpe. Nesses dias eu tenho me sentido... Como é o nome dele, o de "Os Miseráveis"?

SIMPSON - Jean Valjean.

BENSON - Ah, acho que é isso mesmo. Foi ontem à noite mesmo. Ontem eu jurei a ele que tinha 138 páginas na mesa em minha frente. Eu disse-lhe: "Alex, qualquer homem que pegue seu dinheiro e diga a você que tem 138 páginas na mesa em sua frente é nada além de um mentiroso e um ladrão." [pausa] Algumas vezes eu sinto que ele não confia em mim. [pausa] Eu já sei quem é o misterioso desconhecido, é um mentiroso e um ladrão. Certamente, em dias passados François Vior, que vivia de sua habilidade do que podia roubar, um ladrão de jóias, talvez. Um especialista em arrombar cofres. Não há cofre no mundo que ele não consiga abrir. E em segundos, só com as mãos. Significa que devemos começar tudo novamente, embora não seja tão sério. Só temos até agora oito páginas. Vejamos, estamos bem com "Produções de Alexander Meyerheim" e "A garota que roubou a Torre Eiffel" "História original de Richard Benson", e podemos aproveitar o jazz do dia da Bastilha. Só que nesse momento não começamos com GABI e sim com... Rick.

SIMPSON - Rick! Que nome excelente para um misterioso desconhecido!

BENSON - Não fique opinando, comece a datilografar. 
 

EXT - DIA - PRAÇA

BENSON - [V.O.] "Exterior - dia - Uma praça pitoresca. Entra um enorme grupo de festeiros barulhentos, a câmera focaliza um americano bem alto e muito bem bronzeado [ele mesmo]. Vamos colocar nele um tipo de roupa de mentiroso e ladrão, você sabe, várias sombras negras. Então, movendo-se com toda a graça de um gato selvagem, Rick aproxima-se da mesa onde Gabi está sendo repudiada por seu ator. Sua sobrenatural inteligência percebe a situação de uma só vez. Ele hesita. Se há uma única fissura na armadura de Rick é uma cara bonita. Ele finalmente decide e vai em direção à uma outra mesa onde dois habitantes do submundo estão esperando-o.

[Rick senta-se à mesa onde eles estão.]

FRANÇOIS - Então, Rick, pensou sobre o assunto?

RICK - Digamos que eu andei considerando sua proposta.

FRANÇOIS - Trata-se de um plano extremamente simples e bonito. E aliás, muito original, bem fácil.

[Garçonete se aproxima com uma bandeja e, pondo o copo em cima da mesa]

GARÇONETE - Aqui está, sr. Rick.

[garçonete sai de cena.]

FRANÇOIS - Precisamos de você para somente duas coisas: para abrir o cofre e liberar a importância.

OUTRO - Umas poucas horas de trabalho e para isso um milhão de dólares que vamos, evidentemente, dividir em três partes.

RICK - Metade para mim e a outra metade a ser dividida entre vocês dois.

FRANÇOIS- [indignado] Mas, Rick, você já havia concordado!

RICK - Senhores, é fato já conhecido que eu sou não só um excelente arrombador de cofres como também um mentiroso e um ladrão. Metade para mim e a outra metade a ser dividida entre vocês dois.

FRANÇOIS- [V.O.] Muito bem, então, eu te pego com o carro às quatro horas. Até quatro horas então [levanta-se] Rick, resista de todas as formas a seu contínuo impulso de fazer o contrário do que deixamos combinado, sim. Nós dessa vez não seremos tão compreensivos como no ano passado em Tânger.


INT - DIA - QUARTO HOTEL BENSON

[Aposentos de BENSON, ambos estão sentados na cama.]

BENSON - Agora, srta. Simpson, tendo estabelecido um clima de suspense, intriga e grande romance, chegamos mais uma vez a esse momento em que o rapaz e a moça se encontram. Precisamos agora de mais conflito. Um novo personagem talvez. Ah, encontrei! Sentado bem perto está o inimigo número 1 de Rick, o inspetor Gillet, da Força de Polícia Internacional. Parece que ele sabe alguma coisa que o público desconhece. E agora, srta. SIMPSON, que temos determinadas as bases do encaminhamento do enredo e temos inflamado o público com o desejo apaixonado de descobrir o que vem em seguida, eu não os culpo, eu estou louco para descobrir também, podemos fazer uma pausa por algumas páginas para um rápido bate-papo, para conhecer esse tipo de coisa que eu faço tão brilhantemente. A pergunta é: Onde essa cena tão charmosa deveria ocorrer?