24.4.10

parte 3

GABOR - Vendados.

Kusak comenta com os outros.

KUSAK - Atira com os olhos vendados.

GABOR - Cego. Risco máximo.

Os outros concordam.

OUTROS - De acordo.

KUSAK - Bom, irá depois do contorcionista.

GABOR - Impossível. Nunca depois de um número silencioso. E consiga-me um lençol.

Em outra parte, Adele continua a conversar com o contorcionista.

CONTORCIONISTA - Você tem um número?

ADELE - Não, sou o alvo.

KUSAK - É com você que faz Gabor?

ADELE - Faz o quê?

KUSAK - Seu número. Facas. Antes fosse acupuntura. Sem ver, particularmente. Tem um corpo precioso, por que quer despedaçá-lo?

Gabor treina em seu camarim. Um homem com um livro e uma anã-sabe-tudo-de-recordes.

ANÃ - A Estátua da Liberdade tem 46 metros de altura.

HOMEM - Não, 71.

ANÃ - 71 com a base, 46 sem ela.

HOMEM - Capacidade na cabeça?

ANÃ - 40, em pé.

Gabor sai de seu camarim e é visto por Irene.

IRENE (surpresa) - É você?

GABOR - Irene?

IRENE - O que faz aqui? Ninguém me avisou.

GABOR - Sou eu. Está de volta à França? Deixou Glasgow?

IRENE - Você mudou. São seus olhos. Estou tão... Não imaginei que voltaríamos a nos ver.

GABOR - Eu também não.

IRENE - Procurei você por todo lugar, de povoado em povoado, inclusive em Madrid. Alguém me disse que você estava no Vitória. Por meses parei na rua homens que se pareciam contigo. Tomei remédios, me casei duas vezes. Não, três. Perdi o rumo. Lembra-se da sua teoria da sorte? Você dizia que não se consegue sorte, mas que se fabrica.

GABOR - Sua sorte chegou quando me fui.

IRENE - Como senti falta das suas mãos! Me conheciam tão bem. Toque-me.

GABOR - Não, não.

IRENE - Pra dizer adeus, só uma vez.

Gabor toca em seu pescoço e vai descendo pelos seios, a barriga... Adele surge.

ADELE - Desculpem-me, mas o que quer dizer "sem ver"?

GABOR - Significa que os deixaremos sem fôlego.

Irene fica perturbada ao ver Adele e sai. Em outra parte, dançarinas ensaiam e Gabor e Adele também.

MULHER - Ombros pra fora! Queixo pra cima.

ADELE - Era sua esposa?

GABOR - Pés separados.

ADELE - Trouxe-lhe sorte?

GABOR - Não, a agarrei. Ela era a mulher canhão. Voou cem metros e caiu sobre mim. Sem mim, estaria morta.

ADELE - Como eu. Salva todo mundo.

GABOR - Não, não como você.

ADELE - Sem ver, fecha os olhos?

GABOR - Pare direita, respire fundo. Deixe o resto comigo.

ADELE - Já fez isso antes?

GABOR - Parcialmente. Não tinha o alvo correto. Você.

ADELE - Mas o que eu tenho?

GABOR - Você me inspira, tenho fé na sua sorte. Está em você, como uma ferradura ou um trevo de quatro folhas. Mas se perdeu a fé, ali está a saída. Não a culparei.

Adele olha para a porta. Gabor pede que ela escolha uma de suas mãos.

GABOR - Qual mão?

Adele escolhe a esquerda, que é onde está um colar.

GABOR - Vê o que a fé pode fazer? Ponha-o. Se tem que morrer, faça-o com elegância.

Adele coloca o colar. As cortinas se abrem. Aplausos. Se posicionam, fecha-se um lençol em frente a ela. Gabor atira a primeira faca. E as outras. E acerta todas bem próximo a Adele, sendo que uma das facas a atingiu de raspão no cotovelo. A platéia explode em aplausos, os funcionários também. No camarim, Gabor faz-lhe um curativo.

ADELE - Tire-o. Está bem?

GABOR - Sim, bem.

ADELE - Está pálido. Pela estréia?

GABOR - (limpando as facas) Por um instante senti seu corpo e me preocupei. Fiquei tenso.

ADELE - Alguma vez já sentiu medo e prazer ao mesmo tempo?

GABOR - Sim.

ADELE - Quando?

GABOR - Nessa noite.

ADELE - Sentiu-se bem?

GABOR - Evidentemente.

ADELE (imitando-o) Evidentemente!

GABOR - Como?

ADELE - Não, nada. Tem uma coisa que eu queria saber. Ficaria doente se sorrisse de vez em quando?

Mais tarde, no cassino, Adele e o contorcionista jogam numa máquina. No camarim, Gabor recebe o pagamento, mas o devolve.

GABOR - Não, nunca em cheque. Em dinheiro.

KUSAK - Pode fazer o mesmo amanhã em San Remo, com a mesma garota?

GABOR - Quer a ela ou a mim?

KUSAK - Os dois.

Kusak conta o dinheiro e o entrega a Gabor, que o confere.

No cassino, Adele se diverte. Está ganhando. Gabor a vê. Uma mulher o aborda, entusiasmada.

MULHER - Estava na platéia, senti meu corpo em chamas. Desejava que você me atravessasse. Tem uns olhos tão magnéticos. Você hipnotiza? Desejaria ser hipnotizada.

GABOR - Qual mão?

MULHER - Essa.

Ela escolhe a esquerda. Ele abre-a e não tem nada.

GABOR - Lamento. Perdeu.

A mulher, perturbada, sai. Gabor olha para onde estavam Adele e o contorcionista, mas eles já não estão mais lá. Estão namorando em cima de um piano. As moedas se espalham. De repente, surge Gabor.

GABOR - Está tudo bem? Precisam de alguma coisa, bebidas, lenços?

ADELE - O que você quer?

GABOR - Só estou verificando. Diga-me um número.

CONTORCIONISTA - Trinta.

GABOR - (A ele) Não você. (a ela) Você.

ADELE - Zero.

GABOR - Tome. O pagamento desta noite. Coloque-o no zero.

ADELE - Agora?

GABOR - De preferência. (a ele) Volta em quinze minutos. Pode esperar?

O contorcionista fica sem ação, em cima do piano. Gabor a tira de lá e a leva de volta ao cassino.

ADELE - Como me encontrou?

GABOR - Tenha cuidado com os atletas. Três quartos são retardados e o resto têm o pênis do tamanho de uma pulga, ficaria decepcionada.

ADELE - Como sabe, é atleta?

GABOR - Parei a tempo. Construa sua pilha, mas nunca faça apostas pequenas. Se tiver dúvidas, concentre-se no vizinho.

ADELE - Que vizinho?

GABOR - O do número. Concentre-se nele como se fosse seu irmão, seu único amigo.

ADELE - Por que não o faz você mesmo?

GABOR - Proibiram-me a entrada.

ADELE - Onde?

GABOR - No cassino. Também porque se você não está cheia de furos, então está numa boa fase esta noite. E eu com você.

ADELE - Como fazemos, meio a meio?

GABOR - Menos o quarto do hotel.

HOMEM - Façam suas apostas.

Na roleta, Adele joga as suas fichas no zero.

HOMEM - Não mais.

Adele retira suas fichas do zero e o coloca em outro número.
Do lado de fora do cassino, no bar, Gabor se irrita ao ouvir o que ela fez.

GABOR - Não!

GARÇOM - Só uma taça, senhor.

HOMEM - Aí está!

Ela perde.

OUTRO HOMEM - Má sorte.

GABOR (fumando) - Cuide dos seus assuntos. Vamos, vamos. Devagar...

Gabor vai arrastando a taça lentamente pelo balcão; Adele faz o mesmo com as fichas, até chegar ao zero.

GABOR - Conseguiremos.

A bola pára no zero. Eles ganham.

GABOR - Sim!!!

GARÇOM - Sua conta, senhor.

GABOR - Não tenho nada de dinheiro. Limpo. Dei tudo a ela. (brinda) Saúde!

Ela joga novamente no zero e ganha, e assim por diante.

Ext. Noite. Gabor e Adele caminham, felizes.

ADELE - O que poderia comprar com isso, um barco, uma casa?

GABOR - Com seu jeito intempestivo, eu o gastaria em atletas.

Ela sorri, tira o colar e lhe devolve.

ADELE - Pegue, devolvo-lhe o colar.

GABOR - Por quê? Vai voltar para Paris? (pega algumas cédulas) Pela sua opinião, quanto vale isso?

ADELE - Assim, não muito.

GABOR - Queria a verdade? Contarei a história. A sorte sempre me deixava de lado. Outras pessoas sempre a tinham. Sempre me faltava alguma coisa.

ADELE - O quê?

Gabor junta uma nota rasgada em dois, como num passe de mágica.

GABOR - Nos querem amanhã na Itália. Está interessada? Não sentirá falta dele?

ADELE - De quem?

GABOR - Do contorcionista. Disse-lhe quinze minutos.

O contorcionista está com as pernas sobre os ombros, tocando o piano, sozinho.

Ext. Dia. Adele e Gabor numa limusine, rumo à Itália.

Int. Gabor e Adele se apresentando, desta vez sem o lençol em frente dela. No camarim, ele coloca um band-aid no braço dela.

ADELE - Algum número em particular?

GABOR - Trinta e dois, pra variar.

Int. Cassino.
Adele jogando e ganhando novamente. Gasbor a supervisiona do bar. Ela olha para ele, encantada.

GABOR - Pode dizer a ela para parar de me olhar assim?

Adele se concentra no jogo. Quando olha para o bar, Gabor não está mais lá.

ADELE - Não, é evidente que devemos continuar juntos, senão não funciona.

Ex. Noite. Gabor fumando na rua. Adele surge.

GABOR - Juntos! Juntos! Olhe a hora. Ganhará mais amanhã.

ADELE - Quem lhe disse que sua sorte não irá embora do mesmo jeito que chegou? Tenho medo de que a percamos. Você não? Está vendo?

GABOR - Não, estou procurando um táxi. Quer ter certeza de que ainda funciona? (a puxa pelo braço e compra uma rifa de um menino) Tente isso, uma rifa.

Num palco a poucos metros dali está sendo realizado o sorteio. As pessoas estão ansiosas, e anuncia-se o vencedor.

ADELE - O que ganharia?

Ganham um belo carro esportivo, fazem poses para fotos em frente ao carro. Uma mulher o beija no rosto e Adele fica enciumada. Em seguida, saem dirigindo o carro.

GABOR - Subestimei-a.

ADELE - Como?

GABOR - Você é como um cavalo da sorte!

ADELE - A sorte só se trata disso? Montar cavalos, ganhar carros, escolher números... Deve haver algo mais, não?

GABOR - Evidentemente.

ADELE - Mas o quê?

GABOR - Não faço idéia.

ADELE - Você é o especialista, não eu.

GABOR - Não sou especialista, isso é temporário. Você sabe bem que a sorte é um assunto de vida ou morte, não? O quê? Não acredita em mim? (apaga os faróis) E agora?

ADELE - O que está fazendo?

GABOR - Trabalho de campo.

ADELE - Como faz para dirigir sem ver?

GABOR - Façam suas apostas.

ADELE - Não mais. E as curvas?

GABOR - Que curvas? (faz uma curva no escuro) E então?

ADELE - Estamos vivos?

GABOR - Não. Não sente que estamos indo para o céu?

ADELE - Não é o que eu havia imaginado.

GABOR - Evidentemente. É tarde, está tudo fechado.

Ext. Dia. O carro está parado ao lado da estrada, as malas empilhadas no porta-malas. Gabor em pé, fora do carro, observa Adele dormindo no banco. Quando ela acorda, ele está atirando facas num espantalho.

ADELE - Já encontrou meu substituto?

GABOR - Estava desesperado, tivemos afinidade imediatamente. O que achava? Há muito amuletos da sorte.

Começa a chover e refugiam-se numa cabine telefônica.

ADELE - Para quem está ligando? Fanáticos das facas?

GABOR - Tem uma moeda?

ADELE - Não, tenho muitas notas. Enormes. As pessoas vivem sem facas, sabia?

GABOR - Sem braços, sem pernas, sem você... mas não é tão divertido.

ADELE - E então? Que resposta idiota. É curioso como se desconecta.

GABOR - Posso ter alguma privacidade? Há espaço suficiente aqui.

Ela sai da cabine e imediatamente pára de chover. Ela encontra um isqueiro.

ADELE - Esqueça as facas, o ouro cresce sob meus pés.

GABOR - Trabalha o tempo todo, não se cansa?

ADELE - Pegue. Te devia um relógio. Assim estamos quites.