12.4.10

FESTIM DIABÓLICO

FESTIM DIABÓLICO

Este filme-teatro produzido em 1948 é um prato cheio no quesito "filme-texto". Aliás, Hitchcock sempre trabalhou com relativamente poucos cenários (excetuando-se "Os Pássaros" e "Ladrão de Casaca"), especialmente em ambientes fechados, o que torna tudo mais "teatral".
Além do mais, o tema de "Festim Diabólico" (Rope) é, na minha opinião, wildiano até não poder mais. Há ainda mais ecos de Oscar Wilde na caracterização das personagens, especialmente no protagonista, o que fez-me lembrar do primoroso longa baseado em "O Retrato de Dorian Gray", dirigido por Albert Lewin. Impossível não comparar o personagem de James Stewart ao inesquecível Henry Wotton.
Esse é o meu favorito do Hitchcock, não só por ter apenas oito cortes, mas também por tratar de um tema tão "filosófico" e de forma artesanal e apaixonante, e o que é mehor: com diálogos deliciosos.
Pena que o final seja tão nadificante... Mas esse parece ser o karma que Stewart carrega em quase todos os seus filmes, como em "Do Mundo nada se Leva" e aquele lá, como era o título? O "Não sei quê do não sei quê"... Bom, mais provável é que seja karma de Frank Capra, vá saber.

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FADE IN

Exterior / Dia. Música de Al Riggs. Rua vista de cima. Mulher passando com carrinho de bebê. Carros e outros passantes. Créditos.
Música vai se tornando mais sombria. Travelling pára em frente a uma janela com as cortinas fechadas, ao mesmo tempo em que pára a música e ouve-se gritos.
Close no rosto de David, cessando de gritar, sendo estrangulado. Zoom out, e surgem Brandon e Philip, ambos de pé, estrangulando-o.
David desvanece. Brandon olha para o baú que está em frente deles.

BRANDON - Abra.

Philip abre, Brandon coloca David dentro e o fecham. Suspiram. Brandon acende a luz.

PHILIP - Não.

Brandon apaga a luz.

BRANDON - Precisamos ver se...

PHILIP - Eu sei. Mas ainda não. Vamos ficar assim um minuto.

Brandon acende um cigarro, traga-o e expele a fumaça tranquilamente, enquanto Philip luta para se recuperar.

BRANDON - Philip, não temos muito tempo. Você ficou triste por causa da escuridão. (aproximando-se da sjanelas) Ninguém se sente seguro no escuro. Qualquer um que tenha sido criança. Vou abrir, está bem? (abre-as) Assim está bem melhor. (suspira, olhando para fora) Que tarde mais linda! (a Philip) Podíamos ter feito com as cortinas abertas, em plena luz do sol. (tirando as luvas de Philip, que permance abalado) Não se pode ter tudo. E fizemos durante o dia. Agora está tudo bem?

PHILIP - Sim.

Brandon entrega as luvas a Philip.

BRANDON - Guarde isso. Guarde na gaveta dos cheques atrás da caixa.

Philip imediatamente faz isso, enquanto Brandon pega um guardanapo e limpa uma taça.

BRANDON - Agora é peça de museu. Devíamos preservar para a posteridade. Mas é cristal do bom e não quero separar o conjunto. Foi deste copo que David Kentley tomou seu último drinque. Devia ter sido soda ou cerveja. Sempre achei inadequado o david beber algo corrupto como uísque.

PHILIP - Também é inadequado ele ter sido assassinado.

BRANDON - É mesmo, não? Os bons americanos morrem jovens no campo de batalha, não? Os Davids desse mundo meramente ocupam espaço. Isto fez dele a vítima perfeita para o assassinato perfeito. Claro, era estudante de Harvard, talvez com isso seja homicídio justificável.

PHILIP - Está morto e nós o matamos. Mas ainda está aqui.

BRANDON - Em menos de oito horas estará descansando no fundo de um lago.

PHILIP - Enquanto isso está aqui.

Philip aproxima-se de onde está David e tenta abrir o baú.

BRANDON - O que está fazendo?

PHILIP - Não está trancada.

BRANDON - Melhor, é muito mais perigoso. A trava está velha. Não vai funcionar.

PHILIP - Mas devia. Eu o queria fora daqui. Queria que fosse outra pessoa.

BRANDON - Um pouco tarde para isto, não acha? Quem preferia, Kenneth?

PHILIP - Eu não sei, acho que uma pessoa era tão boa ou ruim como qualquer outra. Você talvez. Você me assusta, sempre assustou. Desde o primeiro dia de aula. Talvez faça parte do seu charme. (arrependendo-se) Estou brincando, Brandon. Não fico calmo como você e resolvi brincar com você.

BRANDON - Mas é uma tolice, não acha?

PHILIP - Muito grande. Eu posso tomar um drinque agora?

BRANDON - Claro, esta ocasião merece champanha.

Ambos vão caminhando para outro cômodo.

PHILIP - Champanha?

BRANDON - Coloquei uma garrafa na geladeira.

PHILIP - Quando a colocou lá?

BRANDON - Antes de o David chegar.

PHILIP - Sabia que ia dar certo?

Chegando à cozinha. Brandon abre a geladeira a retira de lá uma garrafa de champanha.

BRANDON - Claro. Nunca faço nada que não seja perfeito. Sempre quis ter mais talento artístico. Assassinato também pode ser arte. O poder de matar é tão gratificante quanto o de criar. Percebeu que fizemos exatamente como planejamos e nada deu errado? Foi perfeito!

PHILIP - Sim.

BRANDON - Um assassinato impecável! Matamos pelo prazer e pelo perigo de matar. Estamos vivos, verdadeira e maravilhosamente vivos. Nem champanha se compara a nós ou a ocasião.

PHILIP - Porém, eu aceito.

BRANDON - Não está mais com medo? Não pode ter medo, nenhum de nós. É a diferença entre nós e os homens comuns. Falam de cometer o crime perfeito, mas ninguém consegue. Ninguém comete assassinato...

Philkip pega a garrafa que Brando estava tentando abrir e a abre.

PHILIP - Dê cá.

BRANDON - ...só para experimentar. Ninguém menos nós. Não está mais com medo?

Philip enche duas taças.

BRANDON - Ainda está com medo?

PHILIP - Não.

BRANDON - Nem de mim?

PHILIP - Não.

BRANDON - (sorrindo) Isso é bom.

PHILIP - Você me impressiona, como sempre.

BRANDON - Isso é melhor ainda. (levanta a taça) Ao David, é claro.

Ambos bebem.

PHILIP - Brandon, como se sentiu?

BRANDON - Quando?

PHILIP - Durante o ato.

BRANDON - Não sei bem. Não me lembro de ter sentido nada, até que o corpo dele amoleceu e então soube que era o fm.

PHILIP - E depois?

BRANDON - Depois senti uma exultação tremenda. Como sentiu-se?

Plano da mesa, arrumada com castiçais, velas ainda apagadas, louças e talheres limpos dispostos sobre ela.

PHILIP (gaguejando) - Não acha que a festa seja um erro?

BRANDON - É o toque final de nossa obra, é a assinatura do artista. Não ter a festa seria como...

PHILIP - Pintar a tela e não pendurá-la?

BRANDON - Má escolha de palavras.

PHILIP - Poderá ser uma escolha pior devido à festa.

BRANDON - Que nada! Esta festa será a mais divertida de todas.

PHILIP - Com essas pessoas?

BRANDON - São todos maçantes. Os Kentley não podem ser mais chatos, mas tinhamos de convidá-los, afinal, são o pai e a mãe do David.

PHILIP - Não será fácil conversar com eles.

BRANDON - Não se preocupe, a Janet os estará bajulando. Pobrezinha... Fez de tudo para agarrar o david, mas tenho a impressão de que não vai conseguir. E você?

PHILIP - Não, acho que não.

BRANDON - Hoje em dia ela pode dar em cima do Kenneth. deve admitir como fui gentil, diante dos eventos recentes...

Interrompe sua fala e pega um castiçal.

BRANDON - Pegue o outro.

PHILIP - Para quê?

BRANDON - Esqueça, venha comigo.

Ambos vão com os castiçais até a sala da primeira cena.

PHILIP - O que vai fazer?

BRANDON - Verá. É brilhante.

Brandon coloca o castiçal em cima do baú onde está o corpo de David.

PHILIP - Que diabos está fazendo?

BRANDON - Transformando nossa obra em obra-prima.

PHILIP - Está exagerando.

BRANDON - Por quê? O que quer dizer? Achei que seria agradável jantarmos aqui, sobre isto. Não é uma ótima idéia?

PHILIP - Ao menos assim ninguém tentará abri-lo.

BRANDON - Acho que não me dá valor.

PHILIP - Estou começando, Brandon.

BRANDON - Vamos, não temos muito tempo, a Sra. Wilson logo retorna.

PHILIP - Esqueceu-se de pedir a chave a ela?

BRANDON - Não me esqueci, estou com a chave dela. Eu disse a ela que tinha perdido a minha.

PHILIP - Que bom. Como lhe explicará isto?

BRANDON - Não lhe explicarei.

Ambos vão levando os talheres e a louça para cima do baú.

PHILIP - Precisamos de uma desculpa.

BRANDON - Não queremos deixar o convidado sozinho.

PHILIP - Precisamos de uma desculpa para os outros.

BRANDON - Muito bem, vou pensar. Você fica muito nervoso, muito facilmente. Temos uma simples desculpa bem aqui. (pega um livro) Com o que se preocupa? O velho Sr. Kentley vem mais para ver esses livros, o que pode ser melhor do que colocá-los na mesa de jantar, onde o pobre velho possa facilmente pegá-los? Amáveis, não somos?

Toca o telefone. Brandon coloca o livro sobre o baú e o atende; ouve por uns segundos e, apressado, volta-se a Philip.

BRANDON - Cuide dos livros.

PHILIP (bem nervoso) - Quem é?

BRANDON - A Sra. Wilson.

Brandon vai em direção à porta de entrada. Philip permanece e pega os livros, até que.

PHILIP - BRANDON!!!

Brandon aparece depressa.

BRANDON - Mas o que...? O que lhe deu para gritar? O que foi?

Brandon vê que uma parte da roupa de David está para fora do baú.

BRANDON - Arranque logo!

PHILIP - Não posso.

BRANDON - (arrancando o tecido) Se a Sra. Wilson estivesse aqui ela arrancaria. Uma idiotice dessas em frente dos outros é como uma confissão. (entrega uns livros a Philip) Tome isso e acalme-se. Se tivesse deixado a luz acesa, eu teria visto.

PHILIP - Tudo bem, você é perfeito!

Continuam a levar os livros para a mesa.

BRANDON - Temos de ser. Concordamos que só poderíamos cometer um crime. O crime de cometer um erro. Ser fraco é um erro.

PHILIP - Porque isso é ser humano.

BRANDON - Porque é ser comum. Nenhum de nós cairá...

A campainha interrompe a fala de Brandon, que vai em direção à porta e a abre. Sra. Wilson entra.

WILSON - Deve-me $2,40 pelo táxi, incluindo gorjeta. Não fosse o trânsito estaria aqui há meia hora.

BRANDON - Tudo bem, não esperávamos que chegasse antes.

WILSON - Procurei o patê de que gostamos em cinco lugares, mas o preço... Não quis desperdiçar nosso dinheiro. Fui àquela doceria no centro, onde o Sr. Cadell vai. Na nossa próxima festa...

Philip entra.

PHILIP - Boa tarde, Sra. Wilson.

WILSON - O que está havendo com a minha mesa?

BRANDON - Estamos passando as coisas para lá.

WILSON - Bem, achei que minha mesa estava linda.

BRANDON - Estava linda sim, mas o Sr. Kentley virá olhar os livros que tenho neste baú. Não vai querer que o coitado se ajoelhe para vê-los.

WILSON - Acho que ficou muito peculiar.

BRANDON - Peculiar?

WILSON - Principalmente com os candelabros, não combinam com nada.

BRANDON - Pelo contrário, acho que sugerem um altar cerimonial onde pode-se amontoar comida para o banquete do sacrifício.

WILSON - "Amontoar" é certo. Não tem espaço para colocar nada direito, não é Sr. Philip?

BRANDON - Vai conseguir arrumar.

WILSON - Será a minha morte. Que faço com os livros?

BRANDON - Coloque-os sobre a mesa de jantar.

WILSON - É uma loucura, se quer saber. Bem, tenho muito o que fazer para ficar discutindo. Mesmo assim, acho muito peculiar.

Sra. Wilson sai de cena.

BRANDON - Qual é o problema?

PHILIP - Tive certeza de que ela perceberia.

BRANDON - O quê?

PHILIP - A corda, é claro. precisamos encondê-la.

BRANDON - Por quê?

PHILIP - Por quê???

BRANDON - É, por quê? É um pedaço de corda, artigo comum numa casa. Para que esconder? Guaradremos na gaveta da cozinha.

Brandon vai em direção à cozinha, rodando o pedaço de corda e o guarda sem que Wilson veja.

BRANDON - Sra. Wilson?

WILSON - Sim.

BRANDON - Tem champanha na geladeira.

WILSON - Não serviremos champanha.

BRANDON - Serviremos.

WILSON (animada) - Se vai ser uma festa assim, vou me arrumar um pouco. Champanha na casa do Sr. Cadell só em ocasiões especiais. Uma vez eu e ele tomamos uma taça no meu aniversário.

BRANDON - Hoje terá a oportunidade de reacender o romance. (a Philip) Posso? (a Wilson) O Sr. Cadell virá.

WILSON - Minha nossa! O Sr. Cadell é muito gentil.

BRANDON - O Rupert vem. Pensei ter dito a você.

WILSON - Gostei de trabalhar para ele.

BRANDON - Não disse.

WILSON - Ele é um cavalheiro. Alguns dizem que é esquisito, mas sempre achei

Philip pára de acompanhar a conversa dos dois e vai para a sala de estar, apreensivo, levando um prato. Em seguida, Brandon o segue, levando outro prato.

WILSON - Poderiam me deixar terminar.

BRANDON - Pensei que gostasse do Rupert.

PHILIP - Eu gosto.

BRANDON - Bem, então...

PHILIP - Rupert Cadell é o que mais pode suspeitar.

BRANDON - É o que pode apreciar isto do nosso ponto de vista, o artístico. Isso é que é excitante.

PHILIP - Isso me assusta!

BRANDON - Abaixe o tom de voz. Com os outros seria fácil e chato demais. Quanto ao Rupert, uma vez pensei em chamá-lo para se unir a nós. Por que não? Quanto mais, melhor.

PHILIP - Ele não tem coragem.

BRANDON - Intelectualmente teria vindo, ele é brilhante, mas é um tanto fastidioso. Podia inventar e admirar, mas jamais concretizar. É onde somos superiores. Temos coragem. O Rupert não.

A Sra. Wilson aparece, trazendo um prato.

WILSON - O Sr. cadell ganhou uma perna ruim por sua coragem na guerra.

Campainha toca.

WILSON - Chegaram. Estamos prontos?

PHILIP - Nunca estarei tão pronto.

WILSON - Não toque piano o tempo todo para não se esquecer de comer. Está emagrecendo. Coma o patê antes que devorem tudo. Esperamos que seja um sucesso. Minha bandeja.

Brandon acende um cigarro.

BRANDON - Leve-a para a cozinha. Eu atendo a porta.

WILSON - Não seria esta correria se tivesse deixado minha mesa...

Sra. Wilson sai de cena.

BRANDON - A diversão começa agora.

Brandon vai atender a porta. Philip permanece, apreensivo.

BRANDON - Entre.

KENNETH - Como vai, Brandon?

BRANDON - Bem. Coloque o chapéu ali.

KENNETH - Obrigado.

BRANDON - Faz tempo, não é?

KENNETH - Por isso fiquei admirado ao telefone. Surpreso, eu diria.

PHILIP - Oi, Kenneth. Que prazer.

KENNETH - Igualmente. Alguma novidade?

PHILIP - Nada de mais. E você?

KENNETH - Preparando-me para os exames. Sempre começo antes de todos. Sou o primeiro a chegar?

BRANDON - Sim, você é.

KENNETH - Por que chego sempre tão cedo?

BRANDON - Porque chega na hora. Sra. Wilson, champanha.

KENNETH - Não é aniversário de ninguém, é?

BRANDON - Não fique preocupado, é quase o contrário.

KENNETH - O contrário?

BRANDON - O Philip partirá temporariamente. Vou levá-lo a Connecticut depois da festa.

KENNETH - Para onde vai?

PHILIP - Para a casa da mãe do Brandon. Vou ficar trancado.

KENNETH - O quê?

BRANDON - Para praticar seis horas por dia. Consegui uma apresentação para ele.

PHILIP - Na Prefeitura.

KENNETH - Que maravilha! Espero que dê um show.

PHILIP - Obrigado.