ADELE - Que faria bobagem. Nem mesmo consigo me afogar. É sempre a mesma coisa.
GABOR - Lá vamos nós, violinos e lenços. Siga tentando, um dia conseguirá.
ADELE - Não vale a pena tentar com minha má sorte.
GABOR - Que sorte? (levanta-se abruptamente) Não! Venha comigo!
PACIENTE - Deixe-a esquentar, não está bem.
GABOR - A sorte! Acha que a pegará como uma gripe? É preciso fé, força de vontade, esforço! Vamos buscá-la.
Gabor tira Adele da cama e ambos saem às pressas do quarto.
ADELE - Buscá-la onde? Nem sequer sei como se parece.
GABOR - Como eu. Quer ver?
Ao passarem pelo corredor, uma enfermeira os vê.
ENFERMEIRA - Onde vão?
Param e avistam um mosquito no teto do corredor.
GABOR - Me dê açúcar. Três!
A mulher faz o que ele pede. Gabor coloca o açúcar no balcão e tira seu relógio de pulso e o coloca sobre o balcão.
GABOR - Te agrada? Pode ganhá-lo.
ADELE - Como?
GABOR - Tem fé?
ADELE - Em quê?
GABOR - Na sorte. (à enfermeira) Você acredita? Sim ou não. Faça sua escolha ou volte para casa.
ENFERMEIRA - Mas estou de plantão.
GABOR - Concentre-se no açúcar, como se a sua vida dependesse dele. Atenção.
Todos olham para o mosquito, que rapidamente voa na direção do açúcar. Adele sorri, Gabor dá seu relógio a ela.
GABOR - Dois contra um. Um começo fácil.
Ext. Dia. Adele e Gabor caminham pelas ruas.
GABOR - Então?
ADELE - Ficou folgado, a pulseira é grande.
GABOR - Não é isso. Está disponível ou não?
ADELE - Diria que estou doente de tão disponível.
GABOR - Posso te dar 25%, está bom?
ADELE - Sim, obrigada.
GABOR - Bem vinda.
ADELE - 25% de quê?
GABOR - Dos meus honorários. Variam noite a noite, às vezes com boas surpresas. Alguma doença congênita? Alergias, próteses, surdez?
ADELE - Não, sou normal. Apesar de que meu olho direito é um pouco débil.
GABOR - Os olhos não importam. Quanto menos veja, menos temerá. Sabe seu tipo sanguíneo?
ADELE - AB, acho. Por quê?
GABOR - Para qualquer acidente. As hemorragias são inofensivas se detidas a tempo. (Entram num táxi.) Está com seu passaporte?
Int. Dia. No saguão da estação Gabor pega sua mala, dentro da qual há vários relógios e, no fundo falso, várias facas.
ADELE - O que é isso? Está de mudança? É isso que você atira?
GABOR - O que esperava, colheres de chá? (ao homem) Carro 12, por favor. E não balance o baú. (a Adele) O que se passa, perdeu o ânimo?
ADELE - Não, não é o que eu tinha imaginado. Essas coisas podem matar.
GABOR - Tudo pode matar. Escova de dentes, peso de papel... As aparências enganam.
ADELE - Essas coisas me deixam nervosa.
GABOR - Mas você está no fim do caminho! Para você isso não importa, não?
ADELE - Não sei, preciso pensar.
GABOR - Olhe para mim. Sinceramente, eu a assusto?
ADELE - Sinceramente, não está muito longe. Depende.
GABOR - De quê?
ADELE - Não sei. Essa não é uma caixa de varinhas mágicas.
GABOR - E isso, a assusta? Está vendo-a se mexer? Está tremendo?
Ela faz sinal com a cabeça que não.
GABOR - Lembre-se, não é o atirador que importa, é o alvo. Algo em você me diz que tem um dom excepcional. De verdade.
Adele se anima.
GABOR - Uma pequena demonstração a deixaria mais tranquila?
Num porão, Adele está em frente a uma porta fechada. Gabor prepara-se para atirar as facas. Ela fecha os olhos. A primeira faca atinge a área próxima ao rosto de Adele, que se assusta. A segunda, próxima à mão esquerda. Ela se assusta novamente. A terceira a atinge de raspão na cintura.
GABOR - O que foi?
ADELE - Pare! me acertou!
GABOR - Evidente, está muito tensa. Esta não é a melhor maneira.
ADELE - Estragou meu casaco.
GABOR - Para onde estou te levando sempre está ensolarado.
ADELE - Com facas no meu estômago dificilmente me importaria com isso.
GABOR - Nunca acertei ninguém no estômago.
ADELE - Mesmo assim não dará certo. Não posso.
GABOR - Por quê? Tem outros planos? Outra ponte, drogas, um revólver?
ADELE - Não, mas isso... não tenho o dom.
Adele caminha em direção à porta.
GABOR - Confie em mim, por favor. Com seu físico e minhas habilidades, mataremos eles.
ADELE - Matar a quem?
Ext. Dia. Trem. Gabor dorme no chão de sua cabine, com as pernas para fora do corredor, atrapalhando os passantes.
GUARDA - Ticket por favor.
GABOR - No paletó, bolso esquerdo.
GUARDA - Está no meio do caminho, senhor.
GABOR - Esses bancos incômodos comprimem minha coluna.
No bar, Adele conversa com um rapaz, que olha seu relógio.
ADELE - É inquebrável. É resistente à água até 250 metros.
RAPAZ - Mergulha?
ADELE - Estou começando. Comecei ontem à noite, mas não muito profundo.
RAPAZ - Nunca se deve forçar na primeira vez. Gentilmente, devagar.
ADELE - Acredita na sorte?
RAPAZ - Sim.
ADELE - Por quê?
RAPAZ - Pelos seus seios sugestivos, sei que vai acontecer algo.
ADELE - Algo como o quê?
RAPAZ - Algo suave e quente. Algo como uma reanimação, porque tenho taquicardia e vou desmaiar de desejo por você.
Adele sorri. Gabor levanta-se, sai da cabine e vai procurá-la nas outras cabines. Chega então ao banheiro.
ADELE - (off) Ocupado!
GABOR - Ocupado com o quê? Abra essa porta! Está fazendo-o de novo. Acabou?
ADELE - Não.
Uma mulher surge, querendo usar o banheiro.
MULHER - Desculpe, senhor, posso?
GABOR - Não terminaram. As camisinhas atrasam as coisas. Se é que as usa...
A mulher se vai. Gabor acende outro cigarro. Adele sai, ainda vestindo a blusa. O rapaz sai depois dela.
GABOR - Você o fez?
ADELE - O quê?
GABOR - O que acha? Se suja com um estranho, usa tampão nos ouvidos? Um arreio?
ADELE - Não é um estranho. Tinha taquicardia.
GABOR - E daí?
ADELE - Estava batendo muito rápido, comigo também acontece. Queria alguém que me abraçasse, precisava de um pouco de carinho. Talvez tenha me deixado levar pelo momento, não sei.
RAPAZ - Eu tampouco, não pensamos.
GABOR - É o casal perfeito, nenhum neurônio entre os dois.
ADELE - É culpa minha. Sei que não ajuda, só preenche os buracos.
RAPAZ - Que buracos?
GABOR - Os teus. Não vê que está cheia de buracos?
Adele sai. O rapaz tenta segui-la, mas Gabor o impede.
GABOR - Não, não, basta. Obrigado. Vá encher outros buracos.
RAPAZ - E você, quem é?
GABOR - Uma fada, não vê?
Adele está pensativa, triste, olhando pela janela, quando Gabor a encontra.
ADELE - Não estou acostumada.
GABOR - A quê.
ADELE - A dizer não. Tenho que me controlar. É como deixar de fumar. A primeira semana é mais difícil, depois passa.
GABOR - Tente chiclete.
ADELE - Por algum motivo não consigo me deter. Os garotos me atraem como vestidos bonitos, sempre quero prová-los. Sou anormal.
GABOR - Não especialmente. Só precisa de algo como guia.
ADELE - Para onde? Para onde quer que eu vá, parece o mau caminho.
GABOR - Não existe mau caminho, só má companhia. Eu farei de você alguém. Entende o que eu digo?
ADELE - Não.
GABOR - Alguém que ria e para quem tudo é fácil. Será a cinzenta Farah Diba, a Rainha da Noite.
ADELE - O que farei durante o dia?
Ele sorri. Ambos ficam observando a paisagem.
Ext. Dia. Sol. Mar. Adele e Gabor saem de um táxi e entram num salão de beleza. Manicures e cabeleireiros estão trabalhando nela, que sai de lá com os cabelos bem curtos, sorridente. Em seguida vão comprar maquiagem e roupas. Ela experimenta vários modelos e compram muitos. No hotel, ela sorri para um homem que lê uma revista no saguão.
GABOR - Te agrada? Se quiser conhecê-lo, o banheiro está à direita.
Param em frente ao elevador.
ADELE - Sorriu para mim, sou gentil.
GABOR - Seu tipo de gentileza leva direto para a cama.
ADELE - Você é muito pessimista.
GABOR - Não em relação a tudo. Por favor, trate de parar direita. Levante as costas e mostre o queixo, deve parecer decidida.
ADELE - Decidida a quê?
GABOR - A comovê-los. A platéia deve apaixonar-se por você. A primeira faca deve retorcer-lhes o estômago.
ADELE - Não se preocupe, uma olhada para você e se retorcerão.
GABOR - Faça uma linha escura aqui. (aponta para o contorno embaixo dos olhos) Parecerá ansiosa, trágica. Eles amam isso.
ADELE - Já não pareço bastante trágica?
GABOR - Escolha um elevador.
ADELE - O da direita.
Imediatamente as portas do elevador à direita abrem-se. Eles entram, seguidos dos carregadores.
GABOR - Vê? Quando você quer.
Ao chegar a seus aposentos, o funcionário do hotel diz:
FUNCIONÁRIO - Por favor, senhor, posso verificar seu cartão de crédito?
GABOR - Sem cartões. Em dinheiro, amanhã.
FUNCIONÁRIO - Desculpe, senhor, mas...
GABOR - Francamente! Fugiria com tudo isso? (Aponta para as várias malas e fecha a porta).
Gabor conta o pouco dinheiro que tem. Enquanto isso, Adele se maquia em seu quarto. Gabor fuma um cigarro e verifica suas facas. À noite, vão ao trabalho, num circo. Vê-se equilibristas, contorcionistas, mágicos, etc.
Olá, Gabor, como vão os truques?
ANÃ - Senhora Vassiliev, nascida em Minsk em 1907 teve 69 gravidezes múltiplas, 16 de gêmeos, 7 de trigêmeos e 4 de quadrigêmeos.
ADELE (a um contorcionista) - Como você faz isso?
Gabor pergunta a um funcionário.
GABOR - Onde está Kusak?
FUNCIONÁRIO - Ocupado. Por quê?
GABOR - Quem se apresenta antes de mim?
FUNCIONÁRIO - Quem é você?
GABOR - Gabor. Facas.
ANÃ - ...por Leon Spinks, em Chicago, Illinois.
FUNCIONÁRIO - (depois de verificar na lista) Não tenho facas.
GABOR - Eu sim. Onde fica o meu camarim?
O funcionário avista Kusak.
FUNCIONÁRIO - Senhor Kusak? Contratamos um número com facas?
KUSAK - Nunca.
GABOR - Com licença.
KUSAK - O que você quer? Ninguém o contratou.
GABOR - Cancelei duas apresentações em Oslo por isso.
KUSAK - O senhor Jarvis escolheu pessoalmente o programa desta noite. Não há facas, somente números novos e inéditos.
GABOR - Por isso estou aqui. Meu número é inédito.
KUSAK - Mas você atira facas, o que há de inédito nisso?
Gabor pensa um pouco depois de ver Adele conversando com o contorcionista.
GABOR - Atiro com os olhos vendados.
KUSAK - Vendados?