24.4.10

parte 2

GABOR - Saber o quê?

ADELE - Que faria bobagem. Nem mesmo consigo me afogar. É sempre a mesma coisa.

GABOR - Lá vamos nós, violinos e lenços. Siga tentando, um dia conseguirá.

ADELE - Não vale a pena tentar com minha má sorte.

GABOR - Que sorte? (levanta-se abruptamente) Não! Venha comigo!

PACIENTE - Deixe-a esquentar, não está bem.

GABOR - A sorte! Acha que a pegará como uma gripe? É preciso fé, força de vontade, esforço! Vamos buscá-la.

Gabor tira Adele da cama e ambos saem às pressas do quarto.

ADELE - Buscá-la onde? Nem sequer sei como se parece.

GABOR - Como eu. Quer ver?

Ao passarem pelo corredor, uma enfermeira os vê.

ENFERMEIRA - Onde vão?

Param e avistam um mosquito no teto do corredor.

GABOR - Me dê açúcar. Três!

A mulher faz o que ele pede. Gabor coloca o açúcar no balcão e tira seu relógio de pulso e o coloca sobre o balcão.

GABOR - Te agrada? Pode ganhá-lo.

ADELE - Como?

GABOR - Tem fé?

ADELE - Em quê?

GABOR - Na sorte. (à enfermeira) Você acredita? Sim ou não. Faça sua escolha ou volte para casa.

ENFERMEIRA - Mas estou de plantão.

GABOR - Concentre-se no açúcar, como se a sua vida dependesse dele. Atenção.

Todos olham para o mosquito, que rapidamente voa na direção do açúcar. Adele sorri, Gabor dá seu relógio a ela.

GABOR - Dois contra um. Um começo fácil.

Ext. Dia. Adele e Gabor caminham pelas ruas.

GABOR - Então?

ADELE - Ficou folgado, a pulseira é grande.

GABOR - Não é isso. Está disponível ou não?

ADELE - Diria que estou doente de tão disponível.

GABOR - Posso te dar 25%, está bom?

ADELE - Sim, obrigada.

GABOR - Bem vinda.

ADELE - 25% de quê?

GABOR - Dos meus honorários. Variam noite a noite, às vezes com boas surpresas. Alguma doença congênita? Alergias, próteses, surdez?

ADELE - Não, sou normal. Apesar de que meu olho direito é um pouco débil.

GABOR - Os olhos não importam. Quanto menos veja, menos temerá. Sabe seu tipo sanguíneo?

ADELE - AB, acho. Por quê?

GABOR - Para qualquer acidente. As hemorragias são inofensivas se detidas a tempo. (Entram num táxi.) Está com seu passaporte?

Int. Dia. No saguão da estação Gabor pega sua mala, dentro da qual há vários relógios e, no fundo falso, várias facas.

ADELE - O que é isso? Está de mudança? É isso que você atira?

GABOR - O que esperava, colheres de chá? (ao homem) Carro 12, por favor. E não balance o baú. (a Adele) O que se passa, perdeu o ânimo?

ADELE - Não, não é o que eu tinha imaginado. Essas coisas podem matar.

GABOR - Tudo pode matar. Escova de dentes, peso de papel... As aparências enganam.

ADELE - Essas coisas me deixam nervosa.

GABOR - Mas você está no fim do caminho! Para você isso não importa, não?

ADELE - Não sei, preciso pensar.

GABOR - Olhe para mim. Sinceramente, eu a assusto?

ADELE - Sinceramente, não está muito longe. Depende.

GABOR - De quê?

ADELE - Não sei. Essa não é uma caixa de varinhas mágicas.

GABOR - E isso, a assusta? Está vendo-a se mexer? Está tremendo?

Ela faz sinal com a cabeça que não.

GABOR - Lembre-se, não é o atirador que importa, é o alvo. Algo em você me diz que tem um dom excepcional. De verdade.

Adele se anima.

GABOR - Uma pequena demonstração a deixaria mais tranquila?

Num porão, Adele está em frente a uma porta fechada. Gabor prepara-se para atirar as facas. Ela fecha os olhos. A primeira faca atinge a área próxima ao rosto de Adele, que se assusta. A segunda, próxima à mão esquerda. Ela se assusta novamente. A terceira a atinge de raspão na cintura.

GABOR - O que foi?

ADELE - Pare! me acertou!

GABOR - Evidente, está muito tensa. Esta não é a melhor maneira.

ADELE - Estragou meu casaco.

GABOR - Para onde estou te levando sempre está ensolarado.

ADELE - Com facas no meu estômago dificilmente me importaria com isso.

GABOR - Nunca acertei ninguém no estômago.

ADELE - Mesmo assim não dará certo. Não posso.

GABOR - Por quê? Tem outros planos? Outra ponte, drogas, um revólver?

ADELE - Não, mas isso... não tenho o dom.

Adele caminha em direção à porta.

GABOR - Confie em mim, por favor. Com seu físico e minhas habilidades, mataremos eles.

ADELE - Matar a quem?

Ext. Dia. Trem. Gabor dorme no chão de sua cabine, com as pernas para fora do corredor, atrapalhando os passantes.

GUARDA - Ticket por favor.

GABOR - No paletó, bolso esquerdo.

GUARDA - Está no meio do caminho, senhor.

GABOR - Esses bancos incômodos comprimem minha coluna.

No bar, Adele conversa com um rapaz, que olha seu relógio.

ADELE - É inquebrável. É resistente à água até 250 metros.

RAPAZ - Mergulha?

ADELE - Estou começando. Comecei ontem à noite, mas não muito profundo.

RAPAZ - Nunca se deve forçar na primeira vez. Gentilmente, devagar.

ADELE - Acredita na sorte?

RAPAZ - Sim.

ADELE - Por quê?

RAPAZ - Pelos seus seios sugestivos, sei que vai acontecer algo.

ADELE - Algo como o quê?

RAPAZ - Algo suave e quente. Algo como uma reanimação, porque tenho taquicardia e vou desmaiar de desejo por você.

Adele sorri. Gabor levanta-se, sai da cabine e vai procurá-la nas outras cabines. Chega então ao banheiro.

ADELE - (off) Ocupado!

GABOR - Ocupado com o quê? Abra essa porta! Está fazendo-o de novo. Acabou?

ADELE - Não.

Uma mulher surge, querendo usar o banheiro.

MULHER - Desculpe, senhor, posso?

GABOR - Não terminaram. As camisinhas atrasam as coisas. Se é que as usa...

A mulher se vai. Gabor acende outro cigarro. Adele sai, ainda vestindo a blusa. O rapaz sai depois dela.

GABOR - Você o fez?

ADELE - O quê?

GABOR - O que acha? Se suja com um estranho, usa tampão nos ouvidos? Um arreio?

ADELE - Não é um estranho. Tinha taquicardia.

GABOR - E daí?

ADELE - Estava batendo muito rápido, comigo também acontece. Queria alguém que me abraçasse, precisava de um pouco de carinho. Talvez tenha me deixado levar pelo momento, não sei.

RAPAZ - Eu tampouco, não pensamos.

GABOR - É o casal perfeito, nenhum neurônio entre os dois.

ADELE - É culpa minha. Sei que não ajuda, só preenche os buracos.

RAPAZ - Que buracos?

GABOR - Os teus. Não vê que está cheia de buracos?

Adele sai. O rapaz tenta segui-la, mas Gabor o impede.

GABOR - Não, não, basta. Obrigado. Vá encher outros buracos.

RAPAZ - E você, quem é?

GABOR - Uma fada, não vê?

Adele está pensativa, triste, olhando pela janela, quando Gabor a encontra.

ADELE - Não estou acostumada.

GABOR - A quê.

ADELE - A dizer não. Tenho que me controlar. É como deixar de fumar. A primeira semana é mais difícil, depois passa.

GABOR - Tente chiclete.

ADELE - Por algum motivo não consigo me deter. Os garotos me atraem como vestidos bonitos, sempre quero prová-los. Sou anormal.

GABOR - Não especialmente. Só precisa de algo como guia.

ADELE - Para onde? Para onde quer que eu vá, parece o mau caminho.

GABOR - Não existe mau caminho, só má companhia. Eu farei de você alguém. Entende o que eu digo?

ADELE - Não.

GABOR - Alguém que ria e para quem tudo é fácil. Será a cinzenta Farah Diba, a Rainha da Noite.

ADELE - O que farei durante o dia?

Ele sorri. Ambos ficam observando a paisagem.

Ext. Dia. Sol. Mar. Adele e Gabor saem de um táxi e entram num salão de beleza. Manicures e cabeleireiros estão trabalhando nela, que sai de lá com os cabelos bem curtos, sorridente. Em seguida vão comprar maquiagem e roupas. Ela experimenta vários modelos e compram muitos. No hotel, ela sorri para um homem que lê uma revista no saguão.

GABOR - Te agrada? Se quiser conhecê-lo, o banheiro está à direita.

Param em frente ao elevador.

ADELE - Sorriu para mim, sou gentil.

GABOR - Seu tipo de gentileza leva direto para a cama.

ADELE - Você é muito pessimista.

GABOR - Não em relação a tudo. Por favor, trate de parar direita. Levante as costas e mostre o queixo, deve parecer decidida.

ADELE - Decidida a quê?

GABOR - A comovê-los. A platéia deve apaixonar-se por você. A primeira faca deve retorcer-lhes o estômago.

ADELE - Não se preocupe, uma olhada para você e se retorcerão.

GABOR - Faça uma linha escura aqui. (aponta para o contorno embaixo dos olhos) Parecerá ansiosa, trágica. Eles amam isso.

ADELE - Já não pareço bastante trágica?

GABOR - Escolha um elevador.

ADELE - O da direita.

Imediatamente as portas do elevador à direita abrem-se. Eles entram, seguidos dos carregadores.

GABOR - Vê? Quando você quer.

Ao chegar a seus aposentos, o funcionário do hotel diz:

FUNCIONÁRIO - Por favor, senhor, posso verificar seu cartão de crédito?

GABOR - Sem cartões. Em dinheiro, amanhã.

FUNCIONÁRIO - Desculpe, senhor, mas...

GABOR - Francamente! Fugiria com tudo isso? (Aponta para as várias malas e fecha a porta).

Gabor conta o pouco dinheiro que tem. Enquanto isso, Adele se maquia em seu quarto. Gabor fuma um cigarro e verifica suas facas. À noite, vão ao trabalho, num circo. Vê-se equilibristas, contorcionistas, mágicos, etc.

Olá, Gabor, como vão os truques?

ANÃ - Senhora Vassiliev, nascida em Minsk em 1907 teve 69 gravidezes múltiplas, 16 de gêmeos, 7 de trigêmeos e 4 de quadrigêmeos.

ADELE (a um contorcionista) - Como você faz isso?

Gabor pergunta a um funcionário.

GABOR - Onde está Kusak?

FUNCIONÁRIO - Ocupado. Por quê?

GABOR - Quem se apresenta antes de mim?

FUNCIONÁRIO - Quem é você?

GABOR - Gabor. Facas.

ANÃ - ...por Leon Spinks, em Chicago, Illinois.

FUNCIONÁRIO - (depois de verificar na lista) Não tenho facas.

GABOR - Eu sim. Onde fica o meu camarim?

O funcionário avista Kusak.

FUNCIONÁRIO - Senhor Kusak? Contratamos um número com facas?

KUSAK - Nunca.

GABOR - Com licença.

KUSAK - O que você quer? Ninguém o contratou.

GABOR - Cancelei duas apresentações em Oslo por isso.

KUSAK - O senhor Jarvis escolheu pessoalmente o programa desta noite. Não há facas, somente números novos e inéditos.

GABOR - Por isso estou aqui. Meu número é inédito.

KUSAK - Mas você atira facas, o que há de inédito nisso?

Gabor pensa um pouco depois de ver Adele conversando com o contorcionista.

GABOR - Atiro com os olhos vendados.

KUSAK - Vendados?