24.4.10

A MULHER E O ATIRADOR DE FACAS

O quão ruim pode ser nossa vida sem esta coisa que é tão difícil de explicar, mas muito fácil de entender?
"La Fille sur le Pont", de Patrice Leconte, é um filme-texto sobre a sorte, mas também sobre a impossibilidade de se ter sorte sozinho. Dizendo em linguagem-chavão, eu diria que é uma estória sobre almas-gêmeas, que só funcionam quando juntas.
Este filmaço começa mal, muito mal, com uma "entrevista" chatíssima da protagonista, lamentando sua triste existência. Depois ele decola e é então que a sorte dela (e a do espectador) começa a mudar.
Impossível não se render ao preto e branco impecável, às cenas de jogatina, à dinheirama rolando solta, ao toque de irrealismo que permeia esta película, que nos encanta com tantas e tantas cenas de pura magia. É praticamente um conto de fadas moderno, mas sem os tiques nervosos hollywoodianos que só estragariam nossa diversão.
Daniel Auteil, como sempre, está superperfeito neste papel, tornando impossível diferenciá-lo de seu personagem, que nos ensina que sorte tem também muito a ver com esperteza e com o destemor de correr riscos.
Vanessa Paradis, atriz esforçada, mas longe de ser perfeita, segura bem a onda num papel que lhe cai como uma luva. Uma pena que sua voz irritante quase coloque tudo a perder.
Mas, você me pergunta, afinal, por que diacho este é um filme-texto?
Ora, porque a Gigi disse que é.
E vamos ao roteiro.

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FADE IN

Int. Plano americano. Adele sentada à uma mesa vazia, com expressão triste.

ENTREVISTADOR - Adiante, Adele, conte-nos.

ADELE - Bem, eu...

ENTREVISTADOR - Tem 22 anos.

ADELE - Não, terei em dois meses.

ENTREVISTADOR - E deixou a escola muito jovem, para começar a trabalhar.

ADELE - Sim, mas não para começar a trabalhar, mas sim porque aos vinte anos conheci alguém. Por isso deixei... saí de casa. Preferia viver com um rapaz ao invés de viver com meus pais, por isso peguei o primeiro disponível. A primeira oportunidade. (foco na platéia ao lado) Precisava ser livre. Liberdade, não sei. Tudo que eu realmente queria era dormir com ele porque quando era mais jovem costumava pensar que a vida começava quando se faz amor. Até então não se é nada. Então fugi com o primeiro tipo disponível para que pudéssemos ficar juntos e para que minha vida começasse. O problema é que não começou muito bem.

ENTREVISTADOR - Não se davam bem? Por que não foi um bom começo?

ADELE - Porque sempre é assim comigo. As coisas começam mal e terminam pior. Nunca tenho um bom número. Conhece esse papel que atrai as moscas, em espiral? É a minha saliva, atraio toda a sujeira do lugar. Sou como um aspirador, juntando toda a sujeira dos demais. Nunca tive um bom número. Tudo em que toco fica amargo.

ENTREVISTADOR - Como você explica isso, Adele?

ADELE - Má sorte não se explica, é como um ouvido para a música, ou se tem ou não.

ENTREVISTADOR - O que aconteceu com o rapaz?

ADELE - Com qual?

ENTREVISTADOR - O primeiro, com o qual você se foi. Não chegou ao fim?

ADELE - Sim, foi até o fim.

ENTREVISTADOR - Mas você estava decepcionada.

ADELE - Não, pelo contrário. Esse é o problema. Se houvesse aproveitado menos, possivelmente não estaria aqui. De qualquer maneira a primeira vez não foi muito confortável.

ENTREVISTADOR - Claro, a primeira vez nunca é fácil. Não estavam à vontade porque ambos eram muito jovens.

ADELE - Não, estávamos no banheiro de um posto de gasolina. Nada prático. Já fez isso alguma vez? Não é prático, particularmente na estrada. Queria pedir carona. Tinha a fantasia de que as histórias de amor sempre acontecem em frente ao mar. Mas pedir carona não foi uma boa idéia. Não surpreende, de qualquer forma. Minhas idéias quase sempre são más. É clássico. Entusiasmo-me, não penso, esse é meu defeito. Se não me houvessem recolhido, talvez tivesse saltado na frente de um caminhão.

ENTREVISTADOR - Quem lhe recolheu?

ADELE - Não posso dizer seu nome, porque é casado. Um psicólogo, diagnosticou-me deprimida. Dormiu comigo para levantar meu moral, tanto que pensei que estivesse grávida. Mas, felizmente, era somente apendicite. Se é que se pode dizer felizmente... O anestesista não foi o fim da minha má sorte.

ENTREVISTADOR - Teve problemas com o anestesista?

ADELE - Não, era muito gentil. Parecia tão apaixonado que o teria seguido até ao fim do mundo. Mas chegamos a Limoges. Engraçado, não? Como as pessoas podem aparecer loucamente apaixonadas quando não o estão. Deve ser fácil fingir. Disse que eu havia entrado na cabeça como Cointreau. Suponho que tenha se cansado de Cointreau, então foi fazer uma ligação.

ENTREVISTADOR - Para quem?

ADELE - Eu nunca soube, pois ele nunca voltou. Estávamos num restaurante e eu não sabia que havia uma porta nos fundos, então o esperei até a hora de fechar. O proprietário vivia no piso de cima. Seu quarto cheirava a fritura, mas tinha mãos suaves e gentis. As mão enganam, podem nos fazer acreditar no que quiserem. Foi assim que consegui meu primeiro trabalho, como recepcionista na sua casa.

ENTREVISTADOR - O que faz uma recepcionista?

ADELE - Dá as boas vindas às pessoas e sorri para todo mundo. Como trabalho não é nenhum desafio, mas você sabe como um sorriso dá idéias às pessoas e Limoges está tão cheio de homens solitários. Não imaginava. O juiz me disse que tinha o povo mais deprimido da França.

ENTREVISTADOR - Que juiz?

ADELE - O juiz que me consolou quando fecharam o lugar devido às recepcionistas. Ele também estava deprimido. Não que me tenha consolado por muito tempo, nem mesmo um quarto de hora, num quarto de hotel, sem almofadas, televisor ou cortinas. Mas não era tão mau. Quando viu que eu tinha olhos vermelhos pelas lágrimas me deu seu lenço, depois se foi. Talvez nunca tenha merecido coisa melhor. Deve ser uma lei da natureza. Alguns nasceram para ser felizes, mas eu fui enganada cada dia da minha vida. Acreditei em cada promessa que ouvi. Nunca consegui nada, nunca fui útil ou apreciada por ninguém, ou feliz, nem mesmo verdadeiramente infeliz, porque só se é infeliz quando se perde alguma coisa, mas nunca tive nada, exceto má sorte.

ENTREVISTADOR - Como vê seu futuro, Adele?

ADELE (chorando) - Não sei. Quando era pequena, tudo o que queria era crescer o mais rápido que pudesse. Agora não consigo encontrar o sentido de tudo isso. Não sei mais. Envelhecendo. Vejo meu futuro como uma sala de espera numa grande estação de trem com bancos e bocejos. Lá fora, ordas de pessoas correndo, sem ver. Todos apressados, pegando trens e táxis. Eles têm algum lugar para ir, alguém com quem se encontrar. E eu permaneço sentada ai, esperando.

ENTREVISTADOR - Esperando o quê, Adele?

ADELE - Que me aconteça alguma coisa.

Ext. Noite. O mar visto de cima. Navio passando por baixo da ponte. Tilt em Adele, que se encolhe de frio enquanto olha para baixo. Panorâmica da ponte. Foco nos pés de Adele, prestes a pular. Close em suas mãos. Montanha russa. Close no rosto de Adele. PA de Gabor fumando um cigarro e observando Adele.

GABOR - Parece alguém que está a ponto de cometer um erro.

ADELE - Estou bem, obrigada.

GABOR - Mas sim, parece desesperada.

ADELE - Acha?

GABOR - De que está brincando, cara ou coroa? A quem quer impressionar?

ADELE - A ninguém. Nunca impressionei ninguém, não vou começar agora.

GABOR - Que idade tem para estar tão triste? Tem alguma doença grave? Te falta um rim, fígado, perna?

ADELE - Não, apenas não tenho amígdalas. Receio que esteja fria.

GABOR - Óbvio que está fria, acha que a esquentam?

ADELE - Não tenho que pensar nisso.

GABOR - Certo, pense em coisas alegres, lhe darão um empurrão.

ADELE - Isso será difícil, pensamentos alegres não são minha especialidade. Por isso estou aqui, vê?

GABOR - Sabe o que vejo? Vejo um desperdício, e isso não suporto.

ADELE - Que desperdício?

GABOR - Você. Não se joga uma luminária fora quando ainda funciona.

ADELE - Esta se queimou há muito tempo.

GABOR - Está me deprimindo.

ADELE - Então vá! Estou no fim do caminho, entende?

GABOR - Que caminho? Olhe para você, sua vida mal começou. É só uma fase ruim, isso é tudo.

ADELE - Minha vida toda foi uma fase ruim, tenho gravada a desgraça, isso não se tira.

GABOR - E acha que a lavará com a água? Aposto que essa é sua primeira tentativa, não?

ADELE - Sim, não passo a vida nas pontes.

GABOR - Eu sim.

ADELE - Fazendo o quê? Você também trata de saltar?

GABOR - Não, eu contrato pessoas.

ADELE - Contrata quem?

GABOR - Assistentes. Mulheres consumidas são minha mercadoria de troca. Geralmente as encontro aqui ou em andares altos. Mas no inverno preferem as pontes.

ADELE - Como eu.

GABOR - Não, não. Não como você. Elas têm fissuras por todo lado, são irreparáveis.

ADELE - E o que faz com elas?

GABOR - Errar, às vezes. Isso depende. É uma questão de equilíbrio.

Gabor tira uma faca do bolso e a enfia no corrimão da ponte, a 2 centímetros da mão de Adele, que recua, assustada...

GABOR - Passados os quarenta, atirar facas se torna passível de erro, por isso recruto nas pontes. Presto um serviço. (retira a faca) Se quer terminar tudo de verdade posso fazer um teste com você.

ADELE - Não, obrigada. Me arranjarei por minha conta.

GABOR - Claro, estará aqui na próxima semana, olhando seus sapatos.

ADELE - Não pense que não o vejo vir, com suas propostas enganadoras. Uma garota numa ponte é uma presa fácil, completamente a sua mercê.

GABOR - Um momento. Não durmo com meus alvos.

ADELE - Sim, pois esse é seu problema. Eu já não acredito em contos de fadas, obrigada.

GABOR - Se quer saltar, salte, vá adiante. E depois...

ADELE - Logo verificarei.

Adele salta da ponte.

GABOR (olhando para baixo) - É idiota ou o quê?

Gabor imediatamente pula. Adele se deixa afundar, olhos fechados, finalmente em paz.
Gabor mergulha em direção a ela e rapidamente a leva de volta à superfície.

Int. Noite. Ambulância.
Dois paramédicos atendem Gabor, que está deitado numa maca, ensopado e muito bravo.

PARAMÉDICO - Respire, senhor.

GABOR - Não quero respirar, entende?

PARAMÉDICO - Nome?

PARAMÉDICO #2 - Conte meus dedos.

GABOR - À merda com seus dedos!

PARAMÉDICO - Tem hipotermia, respire.

GABOR - Eu não! Sou imune. 3:42.

PARAMÉDICO - O quê?

GABOR - Três minutos e quarenta e dois. Barcelona '74, Recorde europeu. É meu.

PARAMÉDICO - Fique deitado.

Adele está deitada na maca ao lado, respirando com dificuldade.

GABOR - Por que pulou?

Ela fala algo num volume bem baixo.

GABOR - O que disse?

O paramédico coloca seu ouvido próximo a ela, que sussurra algo.

PARAMÉDICO - Deixa seu corpo para a ciência.

GABOR - Não ligue para ela. Está brincando.

PARAMÉDICO - São parentes?

GABOR - Sim, sou sua mãe.

PARAMÉDICO - Foi você quem a resgatou?

GABOR - Estava tão escuro que é difícil dizer quem resgatou quem.

Int. Hospital. Gabor sendo levado às pressas numa maca, pelos corredores.

GABOR - Faz tempo que está aqui?

MÉDICO - Dois meses.

GABOR - Vá embora. Estão todos loucos.

Adele e Gabor são deixados num quarto com outro paciente, cada um em um saco térmico ligado a aparelhos.

PACIENTE - Em que ponte estavam?

GABOR - Numa ponte de pedestres próxima à Torre Eiffel. E você?

PACIENTE - Solferino. Você é esquizofrênico?

GABOR - Caráter maníaco.

PACIENTE - Seu primeiro salto?

GABOR - Com ela, sim.

Olhe para ela. Com esses olhos e bunda, você não se afogaria?

PACIENTE - Não vejo conexão.

GABOR - Depende do contexto.

PACIENTE - Mas que contexto?

GABOR - Talvez para você, mas olhe para ela, todo o excesso de pena que carrega. (a Adele) Ficaria doente se sorrisse de vez em quando?

ADELE - Quer dizer agora?

GABOR - Sim, agora. Deveria estar numa geladeira com uma etiqueta no pé.

ADELE - Deveria saber.