24.4.10

A MULHER E O ATIRADOR DE FACAS

O quão ruim pode ser nossa vida sem esta coisa que é tão difícil de explicar, mas muito fácil de entender?
"La Fille sur le Pont", de Patrice Leconte, é um filme-texto sobre a sorte, mas também sobre a impossibilidade de se ter sorte sozinho. Dizendo em linguagem-chavão, eu diria que é uma estória sobre almas-gêmeas, que só funcionam quando juntas.
Este filmaço começa mal, muito mal, com uma "entrevista" chatíssima da protagonista, lamentando sua triste existência. Depois ele decola e é então que a sorte dela (e a do espectador) começa a mudar.
Impossível não se render ao preto e branco impecável, às cenas de jogatina, à dinheirama rolando solta, ao toque de irrealismo que permeia esta película, que nos encanta com tantas e tantas cenas de pura magia. É praticamente um conto de fadas moderno, mas sem os tiques nervosos hollywoodianos que só estragariam nossa diversão.
Daniel Auteil, como sempre, está superperfeito neste papel, tornando impossível diferenciá-lo de seu personagem, que nos ensina que sorte tem também muito a ver com esperteza e com o destemor de correr riscos.
Vanessa Paradis, atriz esforçada, mas longe de ser perfeita, segura bem a onda num papel que lhe cai como uma luva. Uma pena que sua voz irritante quase coloque tudo a perder.
Mas, você me pergunta, afinal, por que diacho este é um filme-texto?
Ora, porque a Gigi disse que é.
E vamos ao roteiro.

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FADE IN

Int. Plano americano. Adele sentada à uma mesa vazia, com expressão triste.

ENTREVISTADOR - Adiante, Adele, conte-nos.

ADELE - Bem, eu...

ENTREVISTADOR - Tem 22 anos.

ADELE - Não, terei em dois meses.

ENTREVISTADOR - E deixou a escola muito jovem, para começar a trabalhar.

ADELE - Sim, mas não para começar a trabalhar, mas sim porque aos vinte anos conheci alguém. Por isso deixei... saí de casa. Preferia viver com um rapaz ao invés de viver com meus pais, por isso peguei o primeiro disponível. A primeira oportunidade. (foco na platéia ao lado) Precisava ser livre. Liberdade, não sei. Tudo que eu realmente queria era dormir com ele porque quando era mais jovem costumava pensar que a vida começava quando se faz amor. Até então não se é nada. Então fugi com o primeiro tipo disponível para que pudéssemos ficar juntos e para que minha vida começasse. O problema é que não começou muito bem.

ENTREVISTADOR - Não se davam bem? Por que não foi um bom começo?

ADELE - Porque sempre é assim comigo. As coisas começam mal e terminam pior. Nunca tenho um bom número. Conhece esse papel que atrai as moscas, em espiral? É a minha saliva, atraio toda a sujeira do lugar. Sou como um aspirador, juntando toda a sujeira dos demais. Nunca tive um bom número. Tudo em que toco fica amargo.

ENTREVISTADOR - Como você explica isso, Adele?

ADELE - Má sorte não se explica, é como um ouvido para a música, ou se tem ou não.

ENTREVISTADOR - O que aconteceu com o rapaz?

ADELE - Com qual?

ENTREVISTADOR - O primeiro, com o qual você se foi. Não chegou ao fim?

ADELE - Sim, foi até o fim.

ENTREVISTADOR - Mas você estava decepcionada.

ADELE - Não, pelo contrário. Esse é o problema. Se houvesse aproveitado menos, possivelmente não estaria aqui. De qualquer maneira a primeira vez não foi muito confortável.

ENTREVISTADOR - Claro, a primeira vez nunca é fácil. Não estavam à vontade porque ambos eram muito jovens.

ADELE - Não, estávamos no banheiro de um posto de gasolina. Nada prático. Já fez isso alguma vez? Não é prático, particularmente na estrada. Queria pedir carona. Tinha a fantasia de que as histórias de amor sempre acontecem em frente ao mar. Mas pedir carona não foi uma boa idéia. Não surpreende, de qualquer forma. Minhas idéias quase sempre são más. É clássico. Entusiasmo-me, não penso, esse é meu defeito. Se não me houvessem recolhido, talvez tivesse saltado na frente de um caminhão.

ENTREVISTADOR - Quem lhe recolheu?

ADELE - Não posso dizer seu nome, porque é casado. Um psicólogo, diagnosticou-me deprimida. Dormiu comigo para levantar meu moral, tanto que pensei que estivesse grávida. Mas, felizmente, era somente apendicite. Se é que se pode dizer felizmente... O anestesista não foi o fim da minha má sorte.

ENTREVISTADOR - Teve problemas com o anestesista?

ADELE - Não, era muito gentil. Parecia tão apaixonado que o teria seguido até ao fim do mundo. Mas chegamos a Limoges. Engraçado, não? Como as pessoas podem aparecer loucamente apaixonadas quando não o estão. Deve ser fácil fingir. Disse que eu havia entrado na cabeça como Cointreau. Suponho que tenha se cansado de Cointreau, então foi fazer uma ligação.

ENTREVISTADOR - Para quem?

ADELE - Eu nunca soube, pois ele nunca voltou. Estávamos num restaurante e eu não sabia que havia uma porta nos fundos, então o esperei até a hora de fechar. O proprietário vivia no piso de cima. Seu quarto cheirava a fritura, mas tinha mãos suaves e gentis. As mão enganam, podem nos fazer acreditar no que quiserem. Foi assim que consegui meu primeiro trabalho, como recepcionista na sua casa.

ENTREVISTADOR - O que faz uma recepcionista?

ADELE - Dá as boas vindas às pessoas e sorri para todo mundo. Como trabalho não é nenhum desafio, mas você sabe como um sorriso dá idéias às pessoas e Limoges está tão cheio de homens solitários. Não imaginava. O juiz me disse que tinha o povo mais deprimido da França.

ENTREVISTADOR - Que juiz?

ADELE - O juiz que me consolou quando fecharam o lugar devido às recepcionistas. Ele também estava deprimido. Não que me tenha consolado por muito tempo, nem mesmo um quarto de hora, num quarto de hotel, sem almofadas, televisor ou cortinas. Mas não era tão mau. Quando viu que eu tinha olhos vermelhos pelas lágrimas me deu seu lenço, depois se foi. Talvez nunca tenha merecido coisa melhor. Deve ser uma lei da natureza. Alguns nasceram para ser felizes, mas eu fui enganada cada dia da minha vida. Acreditei em cada promessa que ouvi. Nunca consegui nada, nunca fui útil ou apreciada por ninguém, ou feliz, nem mesmo verdadeiramente infeliz, porque só se é infeliz quando se perde alguma coisa, mas nunca tive nada, exceto má sorte.

ENTREVISTADOR - Como vê seu futuro, Adele?

ADELE (chorando) - Não sei. Quando era pequena, tudo o que queria era crescer o mais rápido que pudesse. Agora não consigo encontrar o sentido de tudo isso. Não sei mais. Envelhecendo. Vejo meu futuro como uma sala de espera numa grande estação de trem com bancos e bocejos. Lá fora, ordas de pessoas correndo, sem ver. Todos apressados, pegando trens e táxis. Eles têm algum lugar para ir, alguém com quem se encontrar. E eu permaneço sentada ai, esperando.

ENTREVISTADOR - Esperando o quê, Adele?

ADELE - Que me aconteça alguma coisa.

Ext. Noite. O mar visto de cima. Navio passando por baixo da ponte. Tilt em Adele, que se encolhe de frio enquanto olha para baixo. Panorâmica da ponte. Foco nos pés de Adele, prestes a pular. Close em suas mãos. Montanha russa. Close no rosto de Adele. PA de Gabor fumando um cigarro e observando Adele.

GABOR - Parece alguém que está a ponto de cometer um erro.

ADELE - Estou bem, obrigada.

GABOR - Mas sim, parece desesperada.

ADELE - Acha?

GABOR - De que está brincando, cara ou coroa? A quem quer impressionar?

ADELE - A ninguém. Nunca impressionei ninguém, não vou começar agora.

GABOR - Que idade tem para estar tão triste? Tem alguma doença grave? Te falta um rim, fígado, perna?

ADELE - Não, apenas não tenho amígdalas. Receio que esteja fria.

GABOR - Óbvio que está fria, acha que a esquentam?

ADELE - Não tenho que pensar nisso.

GABOR - Certo, pense em coisas alegres, lhe darão um empurrão.

ADELE - Isso será difícil, pensamentos alegres não são minha especialidade. Por isso estou aqui, vê?

GABOR - Sabe o que vejo? Vejo um desperdício, e isso não suporto.

ADELE - Que desperdício?

GABOR - Você. Não se joga uma luminária fora quando ainda funciona.

ADELE - Esta se queimou há muito tempo.

GABOR - Está me deprimindo.

ADELE - Então vá! Estou no fim do caminho, entende?

GABOR - Que caminho? Olhe para você, sua vida mal começou. É só uma fase ruim, isso é tudo.

ADELE - Minha vida toda foi uma fase ruim, tenho gravada a desgraça, isso não se tira.

GABOR - E acha que a lavará com a água? Aposto que essa é sua primeira tentativa, não?

ADELE - Sim, não passo a vida nas pontes.

GABOR - Eu sim.

ADELE - Fazendo o quê? Você também trata de saltar?

GABOR - Não, eu contrato pessoas.

ADELE - Contrata quem?

GABOR - Assistentes. Mulheres consumidas são minha mercadoria de troca. Geralmente as encontro aqui ou em andares altos. Mas no inverno preferem as pontes.

ADELE - Como eu.

GABOR - Não, não. Não como você. Elas têm fissuras por todo lado, são irreparáveis.

ADELE - E o que faz com elas?

GABOR - Errar, às vezes. Isso depende. É uma questão de equilíbrio.

Gabor tira uma faca do bolso e a enfia no corrimão da ponte, a 2 centímetros da mão de Adele, que recua, assustada...

GABOR - Passados os quarenta, atirar facas se torna passível de erro, por isso recruto nas pontes. Presto um serviço. (retira a faca) Se quer terminar tudo de verdade posso fazer um teste com você.

ADELE - Não, obrigada. Me arranjarei por minha conta.

GABOR - Claro, estará aqui na próxima semana, olhando seus sapatos.

ADELE - Não pense que não o vejo vir, com suas propostas enganadoras. Uma garota numa ponte é uma presa fácil, completamente a sua mercê.

GABOR - Um momento. Não durmo com meus alvos.

ADELE - Sim, pois esse é seu problema. Eu já não acredito em contos de fadas, obrigada.

GABOR - Se quer saltar, salte, vá adiante. E depois...

ADELE - Logo verificarei.

Adele salta da ponte.

GABOR (olhando para baixo) - É idiota ou o quê?

Gabor imediatamente pula. Adele se deixa afundar, olhos fechados, finalmente em paz.
Gabor mergulha em direção a ela e rapidamente a leva de volta à superfície.

Int. Noite. Ambulância.
Dois paramédicos atendem Gabor, que está deitado numa maca, ensopado e muito bravo.

PARAMÉDICO - Respire, senhor.

GABOR - Não quero respirar, entende?

PARAMÉDICO - Nome?

PARAMÉDICO #2 - Conte meus dedos.

GABOR - À merda com seus dedos!

PARAMÉDICO - Tem hipotermia, respire.

GABOR - Eu não! Sou imune. 3:42.

PARAMÉDICO - O quê?

GABOR - Três minutos e quarenta e dois. Barcelona '74, Recorde europeu. É meu.

PARAMÉDICO - Fique deitado.

Adele está deitada na maca ao lado, respirando com dificuldade.

GABOR - Por que pulou?

Ela fala algo num volume bem baixo.

GABOR - O que disse?

O paramédico coloca seu ouvido próximo a ela, que sussurra algo.

PARAMÉDICO - Deixa seu corpo para a ciência.

GABOR - Não ligue para ela. Está brincando.

PARAMÉDICO - São parentes?

GABOR - Sim, sou sua mãe.

PARAMÉDICO - Foi você quem a resgatou?

GABOR - Estava tão escuro que é difícil dizer quem resgatou quem.

Int. Hospital. Gabor sendo levado às pressas numa maca, pelos corredores.

GABOR - Faz tempo que está aqui?

MÉDICO - Dois meses.

GABOR - Vá embora. Estão todos loucos.

Adele e Gabor são deixados num quarto com outro paciente, cada um em um saco térmico ligado a aparelhos.

PACIENTE - Em que ponte estavam?

GABOR - Numa ponte de pedestres próxima à Torre Eiffel. E você?

PACIENTE - Solferino. Você é esquizofrênico?

GABOR - Caráter maníaco.

PACIENTE - Seu primeiro salto?

GABOR - Com ela, sim.

Olhe para ela. Com esses olhos e bunda, você não se afogaria?

PACIENTE - Não vejo conexão.

GABOR - Depende do contexto.

PACIENTE - Mas que contexto?

GABOR - Talvez para você, mas olhe para ela, todo o excesso de pena que carrega. (a Adele) Ficaria doente se sorrisse de vez em quando?

ADELE - Quer dizer agora?

GABOR - Sim, agora. Deveria estar numa geladeira com uma etiqueta no pé.

ADELE - Deveria saber.

parte 2

GABOR - Saber o quê?

ADELE - Que faria bobagem. Nem mesmo consigo me afogar. É sempre a mesma coisa.

GABOR - Lá vamos nós, violinos e lenços. Siga tentando, um dia conseguirá.

ADELE - Não vale a pena tentar com minha má sorte.

GABOR - Que sorte? (levanta-se abruptamente) Não! Venha comigo!

PACIENTE - Deixe-a esquentar, não está bem.

GABOR - A sorte! Acha que a pegará como uma gripe? É preciso fé, força de vontade, esforço! Vamos buscá-la.

Gabor tira Adele da cama e ambos saem às pressas do quarto.

ADELE - Buscá-la onde? Nem sequer sei como se parece.

GABOR - Como eu. Quer ver?

Ao passarem pelo corredor, uma enfermeira os vê.

ENFERMEIRA - Onde vão?

Param e avistam um mosquito no teto do corredor.

GABOR - Me dê açúcar. Três!

A mulher faz o que ele pede. Gabor coloca o açúcar no balcão e tira seu relógio de pulso e o coloca sobre o balcão.

GABOR - Te agrada? Pode ganhá-lo.

ADELE - Como?

GABOR - Tem fé?

ADELE - Em quê?

GABOR - Na sorte. (à enfermeira) Você acredita? Sim ou não. Faça sua escolha ou volte para casa.

ENFERMEIRA - Mas estou de plantão.

GABOR - Concentre-se no açúcar, como se a sua vida dependesse dele. Atenção.

Todos olham para o mosquito, que rapidamente voa na direção do açúcar. Adele sorri, Gabor dá seu relógio a ela.

GABOR - Dois contra um. Um começo fácil.

Ext. Dia. Adele e Gabor caminham pelas ruas.

GABOR - Então?

ADELE - Ficou folgado, a pulseira é grande.

GABOR - Não é isso. Está disponível ou não?

ADELE - Diria que estou doente de tão disponível.

GABOR - Posso te dar 25%, está bom?

ADELE - Sim, obrigada.

GABOR - Bem vinda.

ADELE - 25% de quê?

GABOR - Dos meus honorários. Variam noite a noite, às vezes com boas surpresas. Alguma doença congênita? Alergias, próteses, surdez?

ADELE - Não, sou normal. Apesar de que meu olho direito é um pouco débil.

GABOR - Os olhos não importam. Quanto menos veja, menos temerá. Sabe seu tipo sanguíneo?

ADELE - AB, acho. Por quê?

GABOR - Para qualquer acidente. As hemorragias são inofensivas se detidas a tempo. (Entram num táxi.) Está com seu passaporte?

Int. Dia. No saguão da estação Gabor pega sua mala, dentro da qual há vários relógios e, no fundo falso, várias facas.

ADELE - O que é isso? Está de mudança? É isso que você atira?

GABOR - O que esperava, colheres de chá? (ao homem) Carro 12, por favor. E não balance o baú. (a Adele) O que se passa, perdeu o ânimo?

ADELE - Não, não é o que eu tinha imaginado. Essas coisas podem matar.

GABOR - Tudo pode matar. Escova de dentes, peso de papel... As aparências enganam.

ADELE - Essas coisas me deixam nervosa.

GABOR - Mas você está no fim do caminho! Para você isso não importa, não?

ADELE - Não sei, preciso pensar.

GABOR - Olhe para mim. Sinceramente, eu a assusto?

ADELE - Sinceramente, não está muito longe. Depende.

GABOR - De quê?

ADELE - Não sei. Essa não é uma caixa de varinhas mágicas.

GABOR - E isso, a assusta? Está vendo-a se mexer? Está tremendo?

Ela faz sinal com a cabeça que não.

GABOR - Lembre-se, não é o atirador que importa, é o alvo. Algo em você me diz que tem um dom excepcional. De verdade.

Adele se anima.

GABOR - Uma pequena demonstração a deixaria mais tranquila?

Num porão, Adele está em frente a uma porta fechada. Gabor prepara-se para atirar as facas. Ela fecha os olhos. A primeira faca atinge a área próxima ao rosto de Adele, que se assusta. A segunda, próxima à mão esquerda. Ela se assusta novamente. A terceira a atinge de raspão na cintura.

GABOR - O que foi?

ADELE - Pare! me acertou!

GABOR - Evidente, está muito tensa. Esta não é a melhor maneira.

ADELE - Estragou meu casaco.

GABOR - Para onde estou te levando sempre está ensolarado.

ADELE - Com facas no meu estômago dificilmente me importaria com isso.

GABOR - Nunca acertei ninguém no estômago.

ADELE - Mesmo assim não dará certo. Não posso.

GABOR - Por quê? Tem outros planos? Outra ponte, drogas, um revólver?

ADELE - Não, mas isso... não tenho o dom.

Adele caminha em direção à porta.

GABOR - Confie em mim, por favor. Com seu físico e minhas habilidades, mataremos eles.

ADELE - Matar a quem?

Ext. Dia. Trem. Gabor dorme no chão de sua cabine, com as pernas para fora do corredor, atrapalhando os passantes.

GUARDA - Ticket por favor.

GABOR - No paletó, bolso esquerdo.

GUARDA - Está no meio do caminho, senhor.

GABOR - Esses bancos incômodos comprimem minha coluna.

No bar, Adele conversa com um rapaz, que olha seu relógio.

ADELE - É inquebrável. É resistente à água até 250 metros.

RAPAZ - Mergulha?

ADELE - Estou começando. Comecei ontem à noite, mas não muito profundo.

RAPAZ - Nunca se deve forçar na primeira vez. Gentilmente, devagar.

ADELE - Acredita na sorte?

RAPAZ - Sim.

ADELE - Por quê?

RAPAZ - Pelos seus seios sugestivos, sei que vai acontecer algo.

ADELE - Algo como o quê?

RAPAZ - Algo suave e quente. Algo como uma reanimação, porque tenho taquicardia e vou desmaiar de desejo por você.

Adele sorri. Gabor levanta-se, sai da cabine e vai procurá-la nas outras cabines. Chega então ao banheiro.

ADELE - (off) Ocupado!

GABOR - Ocupado com o quê? Abra essa porta! Está fazendo-o de novo. Acabou?

ADELE - Não.

Uma mulher surge, querendo usar o banheiro.

MULHER - Desculpe, senhor, posso?

GABOR - Não terminaram. As camisinhas atrasam as coisas. Se é que as usa...

A mulher se vai. Gabor acende outro cigarro. Adele sai, ainda vestindo a blusa. O rapaz sai depois dela.

GABOR - Você o fez?

ADELE - O quê?

GABOR - O que acha? Se suja com um estranho, usa tampão nos ouvidos? Um arreio?

ADELE - Não é um estranho. Tinha taquicardia.

GABOR - E daí?

ADELE - Estava batendo muito rápido, comigo também acontece. Queria alguém que me abraçasse, precisava de um pouco de carinho. Talvez tenha me deixado levar pelo momento, não sei.

RAPAZ - Eu tampouco, não pensamos.

GABOR - É o casal perfeito, nenhum neurônio entre os dois.

ADELE - É culpa minha. Sei que não ajuda, só preenche os buracos.

RAPAZ - Que buracos?

GABOR - Os teus. Não vê que está cheia de buracos?

Adele sai. O rapaz tenta segui-la, mas Gabor o impede.

GABOR - Não, não, basta. Obrigado. Vá encher outros buracos.

RAPAZ - E você, quem é?

GABOR - Uma fada, não vê?

Adele está pensativa, triste, olhando pela janela, quando Gabor a encontra.

ADELE - Não estou acostumada.

GABOR - A quê.

ADELE - A dizer não. Tenho que me controlar. É como deixar de fumar. A primeira semana é mais difícil, depois passa.

GABOR - Tente chiclete.

ADELE - Por algum motivo não consigo me deter. Os garotos me atraem como vestidos bonitos, sempre quero prová-los. Sou anormal.

GABOR - Não especialmente. Só precisa de algo como guia.

ADELE - Para onde? Para onde quer que eu vá, parece o mau caminho.

GABOR - Não existe mau caminho, só má companhia. Eu farei de você alguém. Entende o que eu digo?

ADELE - Não.

GABOR - Alguém que ria e para quem tudo é fácil. Será a cinzenta Farah Diba, a Rainha da Noite.

ADELE - O que farei durante o dia?

Ele sorri. Ambos ficam observando a paisagem.

Ext. Dia. Sol. Mar. Adele e Gabor saem de um táxi e entram num salão de beleza. Manicures e cabeleireiros estão trabalhando nela, que sai de lá com os cabelos bem curtos, sorridente. Em seguida vão comprar maquiagem e roupas. Ela experimenta vários modelos e compram muitos. No hotel, ela sorri para um homem que lê uma revista no saguão.

GABOR - Te agrada? Se quiser conhecê-lo, o banheiro está à direita.

Param em frente ao elevador.

ADELE - Sorriu para mim, sou gentil.

GABOR - Seu tipo de gentileza leva direto para a cama.

ADELE - Você é muito pessimista.

GABOR - Não em relação a tudo. Por favor, trate de parar direita. Levante as costas e mostre o queixo, deve parecer decidida.

ADELE - Decidida a quê?

GABOR - A comovê-los. A platéia deve apaixonar-se por você. A primeira faca deve retorcer-lhes o estômago.

ADELE - Não se preocupe, uma olhada para você e se retorcerão.

GABOR - Faça uma linha escura aqui. (aponta para o contorno embaixo dos olhos) Parecerá ansiosa, trágica. Eles amam isso.

ADELE - Já não pareço bastante trágica?

GABOR - Escolha um elevador.

ADELE - O da direita.

Imediatamente as portas do elevador à direita abrem-se. Eles entram, seguidos dos carregadores.

GABOR - Vê? Quando você quer.

Ao chegar a seus aposentos, o funcionário do hotel diz:

FUNCIONÁRIO - Por favor, senhor, posso verificar seu cartão de crédito?

GABOR - Sem cartões. Em dinheiro, amanhã.

FUNCIONÁRIO - Desculpe, senhor, mas...

GABOR - Francamente! Fugiria com tudo isso? (Aponta para as várias malas e fecha a porta).

Gabor conta o pouco dinheiro que tem. Enquanto isso, Adele se maquia em seu quarto. Gabor fuma um cigarro e verifica suas facas. À noite, vão ao trabalho, num circo. Vê-se equilibristas, contorcionistas, mágicos, etc.

Olá, Gabor, como vão os truques?

ANÃ - Senhora Vassiliev, nascida em Minsk em 1907 teve 69 gravidezes múltiplas, 16 de gêmeos, 7 de trigêmeos e 4 de quadrigêmeos.

ADELE (a um contorcionista) - Como você faz isso?

Gabor pergunta a um funcionário.

GABOR - Onde está Kusak?

FUNCIONÁRIO - Ocupado. Por quê?

GABOR - Quem se apresenta antes de mim?

FUNCIONÁRIO - Quem é você?

GABOR - Gabor. Facas.

ANÃ - ...por Leon Spinks, em Chicago, Illinois.

FUNCIONÁRIO - (depois de verificar na lista) Não tenho facas.

GABOR - Eu sim. Onde fica o meu camarim?

O funcionário avista Kusak.

FUNCIONÁRIO - Senhor Kusak? Contratamos um número com facas?

KUSAK - Nunca.

GABOR - Com licença.

KUSAK - O que você quer? Ninguém o contratou.

GABOR - Cancelei duas apresentações em Oslo por isso.

KUSAK - O senhor Jarvis escolheu pessoalmente o programa desta noite. Não há facas, somente números novos e inéditos.

GABOR - Por isso estou aqui. Meu número é inédito.

KUSAK - Mas você atira facas, o que há de inédito nisso?

Gabor pensa um pouco depois de ver Adele conversando com o contorcionista.

GABOR - Atiro com os olhos vendados.

KUSAK - Vendados?

parte 3

GABOR - Vendados.

Kusak comenta com os outros.

KUSAK - Atira com os olhos vendados.

GABOR - Cego. Risco máximo.

Os outros concordam.

OUTROS - De acordo.

KUSAK - Bom, irá depois do contorcionista.

GABOR - Impossível. Nunca depois de um número silencioso. E consiga-me um lençol.

Em outra parte, Adele continua a conversar com o contorcionista.

CONTORCIONISTA - Você tem um número?

ADELE - Não, sou o alvo.

KUSAK - É com você que faz Gabor?

ADELE - Faz o quê?

KUSAK - Seu número. Facas. Antes fosse acupuntura. Sem ver, particularmente. Tem um corpo precioso, por que quer despedaçá-lo?

Gabor treina em seu camarim. Um homem com um livro e uma anã-sabe-tudo-de-recordes.

ANÃ - A Estátua da Liberdade tem 46 metros de altura.

HOMEM - Não, 71.

ANÃ - 71 com a base, 46 sem ela.

HOMEM - Capacidade na cabeça?

ANÃ - 40, em pé.

Gabor sai de seu camarim e é visto por Irene.

IRENE (surpresa) - É você?

GABOR - Irene?

IRENE - O que faz aqui? Ninguém me avisou.

GABOR - Sou eu. Está de volta à França? Deixou Glasgow?

IRENE - Você mudou. São seus olhos. Estou tão... Não imaginei que voltaríamos a nos ver.

GABOR - Eu também não.

IRENE - Procurei você por todo lugar, de povoado em povoado, inclusive em Madrid. Alguém me disse que você estava no Vitória. Por meses parei na rua homens que se pareciam contigo. Tomei remédios, me casei duas vezes. Não, três. Perdi o rumo. Lembra-se da sua teoria da sorte? Você dizia que não se consegue sorte, mas que se fabrica.

GABOR - Sua sorte chegou quando me fui.

IRENE - Como senti falta das suas mãos! Me conheciam tão bem. Toque-me.

GABOR - Não, não.

IRENE - Pra dizer adeus, só uma vez.

Gabor toca em seu pescoço e vai descendo pelos seios, a barriga... Adele surge.

ADELE - Desculpem-me, mas o que quer dizer "sem ver"?

GABOR - Significa que os deixaremos sem fôlego.

Irene fica perturbada ao ver Adele e sai. Em outra parte, dançarinas ensaiam e Gabor e Adele também.

MULHER - Ombros pra fora! Queixo pra cima.

ADELE - Era sua esposa?

GABOR - Pés separados.

ADELE - Trouxe-lhe sorte?

GABOR - Não, a agarrei. Ela era a mulher canhão. Voou cem metros e caiu sobre mim. Sem mim, estaria morta.

ADELE - Como eu. Salva todo mundo.

GABOR - Não, não como você.

ADELE - Sem ver, fecha os olhos?

GABOR - Pare direita, respire fundo. Deixe o resto comigo.

ADELE - Já fez isso antes?

GABOR - Parcialmente. Não tinha o alvo correto. Você.

ADELE - Mas o que eu tenho?

GABOR - Você me inspira, tenho fé na sua sorte. Está em você, como uma ferradura ou um trevo de quatro folhas. Mas se perdeu a fé, ali está a saída. Não a culparei.

Adele olha para a porta. Gabor pede que ela escolha uma de suas mãos.

GABOR - Qual mão?

Adele escolhe a esquerda, que é onde está um colar.

GABOR - Vê o que a fé pode fazer? Ponha-o. Se tem que morrer, faça-o com elegância.

Adele coloca o colar. As cortinas se abrem. Aplausos. Se posicionam, fecha-se um lençol em frente a ela. Gabor atira a primeira faca. E as outras. E acerta todas bem próximo a Adele, sendo que uma das facas a atingiu de raspão no cotovelo. A platéia explode em aplausos, os funcionários também. No camarim, Gabor faz-lhe um curativo.

ADELE - Tire-o. Está bem?

GABOR - Sim, bem.

ADELE - Está pálido. Pela estréia?

GABOR - (limpando as facas) Por um instante senti seu corpo e me preocupei. Fiquei tenso.

ADELE - Alguma vez já sentiu medo e prazer ao mesmo tempo?

GABOR - Sim.

ADELE - Quando?

GABOR - Nessa noite.

ADELE - Sentiu-se bem?

GABOR - Evidentemente.

ADELE (imitando-o) Evidentemente!

GABOR - Como?

ADELE - Não, nada. Tem uma coisa que eu queria saber. Ficaria doente se sorrisse de vez em quando?

Mais tarde, no cassino, Adele e o contorcionista jogam numa máquina. No camarim, Gabor recebe o pagamento, mas o devolve.

GABOR - Não, nunca em cheque. Em dinheiro.

KUSAK - Pode fazer o mesmo amanhã em San Remo, com a mesma garota?

GABOR - Quer a ela ou a mim?

KUSAK - Os dois.

Kusak conta o dinheiro e o entrega a Gabor, que o confere.

No cassino, Adele se diverte. Está ganhando. Gabor a vê. Uma mulher o aborda, entusiasmada.

MULHER - Estava na platéia, senti meu corpo em chamas. Desejava que você me atravessasse. Tem uns olhos tão magnéticos. Você hipnotiza? Desejaria ser hipnotizada.

GABOR - Qual mão?

MULHER - Essa.

Ela escolhe a esquerda. Ele abre-a e não tem nada.

GABOR - Lamento. Perdeu.

A mulher, perturbada, sai. Gabor olha para onde estavam Adele e o contorcionista, mas eles já não estão mais lá. Estão namorando em cima de um piano. As moedas se espalham. De repente, surge Gabor.

GABOR - Está tudo bem? Precisam de alguma coisa, bebidas, lenços?

ADELE - O que você quer?

GABOR - Só estou verificando. Diga-me um número.

CONTORCIONISTA - Trinta.

GABOR - (A ele) Não você. (a ela) Você.

ADELE - Zero.

GABOR - Tome. O pagamento desta noite. Coloque-o no zero.

ADELE - Agora?

GABOR - De preferência. (a ele) Volta em quinze minutos. Pode esperar?

O contorcionista fica sem ação, em cima do piano. Gabor a tira de lá e a leva de volta ao cassino.

ADELE - Como me encontrou?

GABOR - Tenha cuidado com os atletas. Três quartos são retardados e o resto têm o pênis do tamanho de uma pulga, ficaria decepcionada.

ADELE - Como sabe, é atleta?

GABOR - Parei a tempo. Construa sua pilha, mas nunca faça apostas pequenas. Se tiver dúvidas, concentre-se no vizinho.

ADELE - Que vizinho?

GABOR - O do número. Concentre-se nele como se fosse seu irmão, seu único amigo.

ADELE - Por que não o faz você mesmo?

GABOR - Proibiram-me a entrada.

ADELE - Onde?

GABOR - No cassino. Também porque se você não está cheia de furos, então está numa boa fase esta noite. E eu com você.

ADELE - Como fazemos, meio a meio?

GABOR - Menos o quarto do hotel.

HOMEM - Façam suas apostas.

Na roleta, Adele joga as suas fichas no zero.

HOMEM - Não mais.

Adele retira suas fichas do zero e o coloca em outro número.
Do lado de fora do cassino, no bar, Gabor se irrita ao ouvir o que ela fez.

GABOR - Não!

GARÇOM - Só uma taça, senhor.

HOMEM - Aí está!

Ela perde.

OUTRO HOMEM - Má sorte.

GABOR (fumando) - Cuide dos seus assuntos. Vamos, vamos. Devagar...

Gabor vai arrastando a taça lentamente pelo balcão; Adele faz o mesmo com as fichas, até chegar ao zero.

GABOR - Conseguiremos.

A bola pára no zero. Eles ganham.

GABOR - Sim!!!

GARÇOM - Sua conta, senhor.

GABOR - Não tenho nada de dinheiro. Limpo. Dei tudo a ela. (brinda) Saúde!

Ela joga novamente no zero e ganha, e assim por diante.

Ext. Noite. Gabor e Adele caminham, felizes.

ADELE - O que poderia comprar com isso, um barco, uma casa?

GABOR - Com seu jeito intempestivo, eu o gastaria em atletas.

Ela sorri, tira o colar e lhe devolve.

ADELE - Pegue, devolvo-lhe o colar.

GABOR - Por quê? Vai voltar para Paris? (pega algumas cédulas) Pela sua opinião, quanto vale isso?

ADELE - Assim, não muito.

GABOR - Queria a verdade? Contarei a história. A sorte sempre me deixava de lado. Outras pessoas sempre a tinham. Sempre me faltava alguma coisa.

ADELE - O quê?

Gabor junta uma nota rasgada em dois, como num passe de mágica.

GABOR - Nos querem amanhã na Itália. Está interessada? Não sentirá falta dele?

ADELE - De quem?

GABOR - Do contorcionista. Disse-lhe quinze minutos.

O contorcionista está com as pernas sobre os ombros, tocando o piano, sozinho.

Ext. Dia. Adele e Gabor numa limusine, rumo à Itália.

Int. Gabor e Adele se apresentando, desta vez sem o lençol em frente dela. No camarim, ele coloca um band-aid no braço dela.

ADELE - Algum número em particular?

GABOR - Trinta e dois, pra variar.

Int. Cassino.
Adele jogando e ganhando novamente. Gasbor a supervisiona do bar. Ela olha para ele, encantada.

GABOR - Pode dizer a ela para parar de me olhar assim?

Adele se concentra no jogo. Quando olha para o bar, Gabor não está mais lá.

ADELE - Não, é evidente que devemos continuar juntos, senão não funciona.

Ex. Noite. Gabor fumando na rua. Adele surge.

GABOR - Juntos! Juntos! Olhe a hora. Ganhará mais amanhã.

ADELE - Quem lhe disse que sua sorte não irá embora do mesmo jeito que chegou? Tenho medo de que a percamos. Você não? Está vendo?

GABOR - Não, estou procurando um táxi. Quer ter certeza de que ainda funciona? (a puxa pelo braço e compra uma rifa de um menino) Tente isso, uma rifa.

Num palco a poucos metros dali está sendo realizado o sorteio. As pessoas estão ansiosas, e anuncia-se o vencedor.

ADELE - O que ganharia?

Ganham um belo carro esportivo, fazem poses para fotos em frente ao carro. Uma mulher o beija no rosto e Adele fica enciumada. Em seguida, saem dirigindo o carro.

GABOR - Subestimei-a.

ADELE - Como?

GABOR - Você é como um cavalo da sorte!

ADELE - A sorte só se trata disso? Montar cavalos, ganhar carros, escolher números... Deve haver algo mais, não?

GABOR - Evidentemente.

ADELE - Mas o quê?

GABOR - Não faço idéia.

ADELE - Você é o especialista, não eu.

GABOR - Não sou especialista, isso é temporário. Você sabe bem que a sorte é um assunto de vida ou morte, não? O quê? Não acredita em mim? (apaga os faróis) E agora?

ADELE - O que está fazendo?

GABOR - Trabalho de campo.

ADELE - Como faz para dirigir sem ver?

GABOR - Façam suas apostas.

ADELE - Não mais. E as curvas?

GABOR - Que curvas? (faz uma curva no escuro) E então?

ADELE - Estamos vivos?

GABOR - Não. Não sente que estamos indo para o céu?

ADELE - Não é o que eu havia imaginado.

GABOR - Evidentemente. É tarde, está tudo fechado.

Ext. Dia. O carro está parado ao lado da estrada, as malas empilhadas no porta-malas. Gabor em pé, fora do carro, observa Adele dormindo no banco. Quando ela acorda, ele está atirando facas num espantalho.

ADELE - Já encontrou meu substituto?

GABOR - Estava desesperado, tivemos afinidade imediatamente. O que achava? Há muito amuletos da sorte.

Começa a chover e refugiam-se numa cabine telefônica.

ADELE - Para quem está ligando? Fanáticos das facas?

GABOR - Tem uma moeda?

ADELE - Não, tenho muitas notas. Enormes. As pessoas vivem sem facas, sabia?

GABOR - Sem braços, sem pernas, sem você... mas não é tão divertido.

ADELE - E então? Que resposta idiota. É curioso como se desconecta.

GABOR - Posso ter alguma privacidade? Há espaço suficiente aqui.

Ela sai da cabine e imediatamente pára de chover. Ela encontra um isqueiro.

ADELE - Esqueça as facas, o ouro cresce sob meus pés.

GABOR - Trabalha o tempo todo, não se cansa?

ADELE - Pegue. Te devia um relógio. Assim estamos quites.

parte 4

GABOR - Não me deve nada.

ADELE - Aprenda a perder ou tomará o ganho por certo.

Surge um arco-íris.

ADELE - Como se diz arco-íris em italiano? Deveríamos fazer um desejo. Sorria, estamos de férias.

GABOR - Não estamos de férias, estamos perdidos.

ADELE - Não, você que é um pessimista. Ouça, apenas siga o som dos grilos.

Ext. Dia. restaurante. Um garçom limpa as mesas e olha Adele, que corresponde.

GABOR - Quer sobremesa?

ADELE - Hein?

GABOR - Não, digo... quer ele de sobremesa, com uma colher de sorvete em cima. (olha as horas)

ADELE - Tem que pegar um trem?

GABOR - Sim, de férias pega-se trens. O das 8:23 é muito bom.

ADELE - Bom para quem?

GABOR - Deveria deixá-lo sentar-se aqui ou torcerá o pescoço.

ADELE - Não é preciso, só estou olhando. Tem que admitir que me contive ultimamente.

GABOR - Não seja tímida, com sorte a tomará parada em uma mesa, à portuguesa. Uma pena perdê-lo. E se ele a convidasse para ir com ele agora?

ADELE - Seríamos felizes?

GABOR - Quem?

ADELE - Ele e eu?

GABOR - Vou lhe contar uma história. Há muito tempo, eu vivia numa rua, do lado par, no número 22. E olhava pela janela as casas de número ímpar, na calçada em frente, porque pensava que as pessoas ali eram mais felizes, que suas peças eram mais claras, suas festas mais divertidas. Mas suas casas eram mais escuras e suas peças pequenas e eles também olhavam o outro lado da rua. Porque sempre pensamos que a sorte é aquilo que não temos. (levanta-se e pega o paletó) Bem, preciso pegar um trem. Se você não aparecer, saberei que se foi.

ADELE - Ir para onde?

GABOR - Ver se o ouro lado é melhor.

Gabor vai embora. Adele olha para o garçom, que parou de limpar as mesas e a observa.

Int. Dia. Num balcão, Adele e o garçom estão quase lá.

ADELE - Melhor não. Desculpe. Desculpe, não é você. Não é você quem estou buscando. Que horas são?

Ela sai correndo. No relógio da estação vê-se que são 6:15. Próximo á estação de trem, Gabor está caminhando sobre os trilhos; as malas empilhadas na plataforma. O trem se aproxima. Gabor fica parado no cruzamento.

GABOR - Coroa.

O trem passa pelo outro trilho, ao lado dele. Surge então Adele, cansada da corrida e preocupada.

GABOR - Cara.

ADELE - O que está fazendo? Brincando com trens na sua idade! O que procurava?

GABOR - Procuro minha vista.

ADELE - Olhe para mim. Acreditei no que me disse sobre a sorte. Trevos de quatro folhas, vida fácil e Farah Diba. Confie em você. É um truque sujo, isso que você faz. Desanimar os outros com seu orgulho e trens e números de desaparecimento. Você é como um tutor, todo dia julgando e fazendo sermões. Está bem! Está mal! Queixo para cima! Pare aí!

GABOR - Sou como um tutor?

ADELE - Um pouco.Não... mal-humorado. Sou uma boba. Não foi idéia minha, você me trouxe aqui, não pode me deixar agora. Estou me acostumando a ter sorte e a você também. Sabe o que eu quero?

GABOR - O mesmo que eu?

ADELE - Agora mesmo. Onde quer que seja.
Eles caminham com as malas para um lugar isolado e... Lá ele atira facas em volta dela. As últimas ele atira de olhos fechados. Ao fim, ambos sorriem, satisfeitos.

Ext. Dia. Plataforma de embarque. Prestes a embarcarem num navio.

ADELE - O que disse a eles?

GABOR - Que estamos prontos.

ADELE - Prontos para quê?

GABOR - Prontos para tudo, para fazer carreira internacional. Está pronta?

ADELE - Ora, porque estou pronta.

Entram no navio.

Int. Apresentador anuncia o próximo número à platéia.

APRESENTADOR - A Roda da Morte!

Adele e Gabor esão se arrumando no camarim.

ADELE (preocupada) - Roda de quê?

GABOR - Da Morte. Uma pequena variação. As pessoas se entediam nos cruzeiros, precisam de movimento. Bem, vamos.

Adele é colocada na Roda da Morte, que começa a girar. Gabor se prepara para começar. Atira todas as facas bem próximo a ela, mas não a fere. Ao fim, a platéia aplaude, em êxtase. No camarim, ele coloca-lhe um band-aid sobre um pequeno ferimento no braço dela.

GABOR - Inclinou-se.

Ela confirma.

Ext. Noite. Fogos de artifício no céu. Estão todos numa festa de casamento, os noivos dançam.

ADELE - Vamos dançar?

GABOR - Não.

ADELE - Não sou muito boa.

Ele se deixa levar por ela, e vão dançando, sorridentes; ela mais que ele, que está preocupado. Não dura muito o clima estranho entre eles, pois logo a música acaba.

ADELE - Obrigada.

Pouco depois, o noivo (Takis) e Gabor estão sentados.

TAKIS - Tem fogo?

GABOR - Pegue.

Gabor entrega-lhe o isqueiro. O noivo olha para o objeto, intrigado.

TAKIS - Onde o encontrou?

GABOR - Na Itália, junto ao caminho.

TAKIS - Curioso, é meu. T.P. Takis Papadopoulos. Sou eu.

GABOR - Pegue-o.

TAKIS - Não, guarde-o com você. Minha mulher quer que eu pare de fumar. Disse que sim para agradá-la. (observam a noiva dançando só) De qualquer forma, ela é italiana, eu sou grego. Mal nos entendemos, não vale a pena discutir.

Gabor guarda o isqueiro no bolso do casaco. Adele senta-se ao lado de Gabor, com frio.

GABOR - Está com frio?

ADELE - Não sei, provavelmente esteja mareada.

Gabor tira seu casaco e coloca-o sobre ela, que sorri e fica ouvindo a música. Gabor levanta-se e sai. Takis e Adele se olham. O enfeite de bolo dos noivos cai com o vento.

Int. Noite. Salão de festas vazio, exceto por um funcionário limpando o local. A noiva corre desesperada à procura do noivo.

Int. Corredor. Adele vai até o quarto de Gabor levar seu casaco.

ADELE - Trouxe seu... pegue.

GABOR - Obrigado, mas não há pressa.

ADELE - Não.. na verdade, sim.

GABOR - O que foi, dormiu mal?

ADELE - Vou embora. Estou te deixando.

GABOR - Por quem?

ADELE - Pelo indicado, o que estava me esperando. Ele me levará para longe.

Gabor vai até o convés, onde observa Takis colocando as malas num barco.

GABOR - Mas não é possível!

ADELE - Sim.

GABOR - Não ele. É recém-casado, é depressivo. É grego!
ADELE - Ninguém nunca me olhou como ele. Ninguém havia me perguntado qual lado da cama eu preferia Se sentia frio ou calor, fome ou sede, exceto você, talvez, num dia bom.

GABOR - Não. Nunca te perguntei qual lado da cama preferia.

ADELE - Esquerdo. Você, depois ele, são as únicas coisas boas que me aconteceram na vida. Mas isso não é muito. Você e eu sempre estaremos juntos. Como fazemos, apertamos as mãos? Nos abraçamos?

GABOR - Nos esquecemos.

ADELE - Não lhe prometo nada.

No pequeno barco, afastando-se do navio, Adele olha tristemente para onde está Gabor.

ADELE - Desculpe-me.

Gabor fica sentado, tristemente observando o barco se afastar.

GABOR - Por nada.

E olha a noiva, chorando, vendo seu noivo partir. Ela olha para o mar.

GABOR - Parece alguém que está a ponto de cometer um erro.

A noiva olha para ele.

Int. Gabor está amarrando a noiva na Roda da Morte. Nas primeiras facas que atira vai bem, até que... Ele a acerta na perna. A mulher grita. A roda imediatamente pára de girar.

Ext. Dia. No mar aberto, problemas no paraíso. Takis e Adele estão à deriva.

Ext. Dia. Numa parada para socorrer a noiva, Gabor está sentado, observando os médicos correndo com a maca e a colocando numa ambulância.

NOIVA - Takis!!!

A ambulância sai a toda velocidade.

Int. Dia. Na alfândega, Gabor explica-se ao guarda.

GABOR - Artista. Artista de cabaré. Atiro facas.

O guarda carimba seu passaporte.

Ext. Dia. À beira de uma estrada empoeirada, Gabor tenta, sem sucesso, pegar uma carona.

GABOR - Não entendo o que te deu para ir com esse sujeito.

Ext. Dia. barco em alto-mar.

ADELE - O amor ataca inesperadamente. Sentia que se parecia tanto comigo, parecia tão triste. Além disso, me prometeu que seria para sempre.

GABOR - Para sempre... Quer olhar o seu pastor grego. Escolheu outro perdido, se pode ver.

ADELE - Sim, mas não podia prever.

GABOR - Prever o quê?

ADELE - Que terminaria assim. Ainda por cima tão rápido.

Surge um helicóptero. Takis acena e grita. O helicóptero os resgata.

Ext. Dia. Base na Grécia. O helicóptero pusa e uma mulher os recebe. Em seguida, Takis se engraça com a mulher.

ADELE - Mais que durar para sempre, diria que acabou logo em seguida. Nos levaram a uma base grega e foi ali onde ele mudou de opinião.

GABOR - E então?

ADELE - Então nada. Me deram café quente e um sorriso para levantar o moral.

Um guarda se aproxima de Adele, sorrindo e senta-se a seu lado.

GABOR - Não.

ADELE - Sim. Foi assim que tudo recomeçou, como antes.

GABOR - Antes do quê?

ADELE - Antes de você.

Numa feira ao ar livre, um homem embaralha cartas. Adele escolhe uma.

HOMEM - Perdeu.

ADELE - Vê? Não funciona mais.

HOMEM - É a sorte. Vai e vem.

Adele pega o dinheiro e corre.

Ext. Dia. Panorâmica do Partenon. Adele está sentada em frente.

ADELE - E você, como está?

Gabor atirando facas num desenho de Adele, na rua.

GABOR - Tranquilo.

ADELE - Acredita nesse história de bilhete rasgado?

GABOR - Que bilhete?

ADELE - Aquele rasgado em duas metades que não valem nada uma sem a outra. Acredita?

Ext. Noite. Adele está sentada, com frio, tendo o Partenon como pano de fundo.

Ext. Noite. Gabor caminhando pelas ruas.

ADELE - Está aí?

GABOR - Sim, estou aqui.

ADELE - Ainda no ramo do espetáculo?

Gabor está distribuindo panfletos.

GABOR - Claro. Como nunca antes. (a transeuntes) São de Paris? Não viram passar uma loira de olhar perdido com um relógio a prova d'água, morta de tristeza.

Int. Noite. Gabor dorme numa cama um quarto com outros homens. Um dos homens tenta roubar-lhe o isqueiro, mas Gabor o impede.

GABOR - Lamento, mas preciso dele no caso de um ataque de melancolia. Todos corremos perigo. Acha que sou idiota? Sei que parece idiota agarrar-se a nada, um isqueiro, um bilhete rasgado, seu primeiro olhar nessa ponte. A mesma noite em que eu também pensava em saltar.

Close no rosto de Adele, na ponte.

GABOR - Mas não vale a pena morrer. Tudo o que se precisa é de uma garota com numa ponte com grandes olhos tristes. (acende o isqueiro) Vou deixá-lo aceso. Nunca se sabe, poderia passar por aqui. (o isqueiro se apaga) A porta!

Alguém fecha a porta.

Ext. Dia. feira livre. Gabor tenta vender suas facas. Uma mulher com uma criança param e olham as facas.

GABOR - Pague o que quiser, uma panqueca, cocos, um pepino...

A mulher vai embora. Gabor vê Adele caminhando por ali. Esquece as facas e corre atrás dela, mas quase é atropelado. Ao cair no chão, percebe que se trata de outra mulher, não de Adele.

Ext. Noite. Gabor caminhando com muletas sobre uma ponte. Com dificuldade, passa para o outro lado da ponte e olha para baixo. Quando está prestes a se soltar, ouve a voz de Adele.

ADELE - Parece alguém que está a ponto de cometer um erro.

Ele olha para ela.

ADELE - O que está esperando, a maré alta? Não é fácil, não? Achou que poderia pôr a mente em branco e deixar-se cair, mas não funciona assim. Além do mais, as pontes não são lugares tranquilos para saltar. Sempre há alguém criando dúvidas. Quebrou alguma coisa?

GABOR - Tudo. Preciso trocar tudo. Mas não vale a pena, é mais barato um novo atirador de facas.

ADELE - E o que eu faria com um novo atirador de facas? (segura as mãos dele) Está com frio? Está tremendo.

GABOR - Sonhou. Nunca tremo.

ADELE - Talvez nós dois tenhamos sonhado, e não foi ruim. Vamos?

GABOR - Para onde?

ADELE - Não importa. Para onde quer que a gente vá, encontrará facas para atirar em mim.

Adele o ajuda a voltar para a ponte. Eles ficam cara a cara.

ADELE - De qualquer forma, não temos escolha. Se não sou eu que salto, é você. Não podemos continuar.

GABOR - Continuar como?

ADELE - Sem estarmos juntos.

Abraçam-se longamente. Zoom out da ponte.

FADE OUT

12.4.10

FESTIM DIABÓLICO

FESTIM DIABÓLICO

Este filme-teatro produzido em 1948 é um prato cheio no quesito "filme-texto". Aliás, Hitchcock sempre trabalhou com relativamente poucos cenários (excetuando-se "Os Pássaros" e "Ladrão de Casaca"), especialmente em ambientes fechados, o que torna tudo mais "teatral".
Além do mais, o tema de "Festim Diabólico" (Rope) é, na minha opinião, wildiano até não poder mais. Há ainda mais ecos de Oscar Wilde na caracterização das personagens, especialmente no protagonista, o que fez-me lembrar do primoroso longa baseado em "O Retrato de Dorian Gray", dirigido por Albert Lewin. Impossível não comparar o personagem de James Stewart ao inesquecível Henry Wotton.
Esse é o meu favorito do Hitchcock, não só por ter apenas oito cortes, mas também por tratar de um tema tão "filosófico" e de forma artesanal e apaixonante, e o que é mehor: com diálogos deliciosos.
Pena que o final seja tão nadificante... Mas esse parece ser o karma que Stewart carrega em quase todos os seus filmes, como em "Do Mundo nada se Leva" e aquele lá, como era o título? O "Não sei quê do não sei quê"... Bom, mais provável é que seja karma de Frank Capra, vá saber.

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FADE IN

Exterior / Dia. Música de Al Riggs. Rua vista de cima. Mulher passando com carrinho de bebê. Carros e outros passantes. Créditos.
Música vai se tornando mais sombria. Travelling pára em frente a uma janela com as cortinas fechadas, ao mesmo tempo em que pára a música e ouve-se gritos.
Close no rosto de David, cessando de gritar, sendo estrangulado. Zoom out, e surgem Brandon e Philip, ambos de pé, estrangulando-o.
David desvanece. Brandon olha para o baú que está em frente deles.

BRANDON - Abra.

Philip abre, Brandon coloca David dentro e o fecham. Suspiram. Brandon acende a luz.

PHILIP - Não.

Brandon apaga a luz.

BRANDON - Precisamos ver se...

PHILIP - Eu sei. Mas ainda não. Vamos ficar assim um minuto.

Brandon acende um cigarro, traga-o e expele a fumaça tranquilamente, enquanto Philip luta para se recuperar.

BRANDON - Philip, não temos muito tempo. Você ficou triste por causa da escuridão. (aproximando-se da sjanelas) Ninguém se sente seguro no escuro. Qualquer um que tenha sido criança. Vou abrir, está bem? (abre-as) Assim está bem melhor. (suspira, olhando para fora) Que tarde mais linda! (a Philip) Podíamos ter feito com as cortinas abertas, em plena luz do sol. (tirando as luvas de Philip, que permance abalado) Não se pode ter tudo. E fizemos durante o dia. Agora está tudo bem?

PHILIP - Sim.

Brandon entrega as luvas a Philip.

BRANDON - Guarde isso. Guarde na gaveta dos cheques atrás da caixa.

Philip imediatamente faz isso, enquanto Brandon pega um guardanapo e limpa uma taça.

BRANDON - Agora é peça de museu. Devíamos preservar para a posteridade. Mas é cristal do bom e não quero separar o conjunto. Foi deste copo que David Kentley tomou seu último drinque. Devia ter sido soda ou cerveja. Sempre achei inadequado o david beber algo corrupto como uísque.

PHILIP - Também é inadequado ele ter sido assassinado.

BRANDON - É mesmo, não? Os bons americanos morrem jovens no campo de batalha, não? Os Davids desse mundo meramente ocupam espaço. Isto fez dele a vítima perfeita para o assassinato perfeito. Claro, era estudante de Harvard, talvez com isso seja homicídio justificável.

PHILIP - Está morto e nós o matamos. Mas ainda está aqui.

BRANDON - Em menos de oito horas estará descansando no fundo de um lago.

PHILIP - Enquanto isso está aqui.

Philip aproxima-se de onde está David e tenta abrir o baú.

BRANDON - O que está fazendo?

PHILIP - Não está trancada.

BRANDON - Melhor, é muito mais perigoso. A trava está velha. Não vai funcionar.

PHILIP - Mas devia. Eu o queria fora daqui. Queria que fosse outra pessoa.

BRANDON - Um pouco tarde para isto, não acha? Quem preferia, Kenneth?

PHILIP - Eu não sei, acho que uma pessoa era tão boa ou ruim como qualquer outra. Você talvez. Você me assusta, sempre assustou. Desde o primeiro dia de aula. Talvez faça parte do seu charme. (arrependendo-se) Estou brincando, Brandon. Não fico calmo como você e resolvi brincar com você.

BRANDON - Mas é uma tolice, não acha?

PHILIP - Muito grande. Eu posso tomar um drinque agora?

BRANDON - Claro, esta ocasião merece champanha.

Ambos vão caminhando para outro cômodo.

PHILIP - Champanha?

BRANDON - Coloquei uma garrafa na geladeira.

PHILIP - Quando a colocou lá?

BRANDON - Antes de o David chegar.

PHILIP - Sabia que ia dar certo?

Chegando à cozinha. Brandon abre a geladeira a retira de lá uma garrafa de champanha.

BRANDON - Claro. Nunca faço nada que não seja perfeito. Sempre quis ter mais talento artístico. Assassinato também pode ser arte. O poder de matar é tão gratificante quanto o de criar. Percebeu que fizemos exatamente como planejamos e nada deu errado? Foi perfeito!

PHILIP - Sim.

BRANDON - Um assassinato impecável! Matamos pelo prazer e pelo perigo de matar. Estamos vivos, verdadeira e maravilhosamente vivos. Nem champanha se compara a nós ou a ocasião.

PHILIP - Porém, eu aceito.

BRANDON - Não está mais com medo? Não pode ter medo, nenhum de nós. É a diferença entre nós e os homens comuns. Falam de cometer o crime perfeito, mas ninguém consegue. Ninguém comete assassinato...

Philkip pega a garrafa que Brando estava tentando abrir e a abre.

PHILIP - Dê cá.

BRANDON - ...só para experimentar. Ninguém menos nós. Não está mais com medo?

Philip enche duas taças.

BRANDON - Ainda está com medo?

PHILIP - Não.

BRANDON - Nem de mim?

PHILIP - Não.

BRANDON - (sorrindo) Isso é bom.

PHILIP - Você me impressiona, como sempre.

BRANDON - Isso é melhor ainda. (levanta a taça) Ao David, é claro.

Ambos bebem.

PHILIP - Brandon, como se sentiu?

BRANDON - Quando?

PHILIP - Durante o ato.

BRANDON - Não sei bem. Não me lembro de ter sentido nada, até que o corpo dele amoleceu e então soube que era o fm.

PHILIP - E depois?

BRANDON - Depois senti uma exultação tremenda. Como sentiu-se?

Plano da mesa, arrumada com castiçais, velas ainda apagadas, louças e talheres limpos dispostos sobre ela.

PHILIP (gaguejando) - Não acha que a festa seja um erro?

BRANDON - É o toque final de nossa obra, é a assinatura do artista. Não ter a festa seria como...

PHILIP - Pintar a tela e não pendurá-la?

BRANDON - Má escolha de palavras.

PHILIP - Poderá ser uma escolha pior devido à festa.

BRANDON - Que nada! Esta festa será a mais divertida de todas.

PHILIP - Com essas pessoas?

BRANDON - São todos maçantes. Os Kentley não podem ser mais chatos, mas tinhamos de convidá-los, afinal, são o pai e a mãe do David.

PHILIP - Não será fácil conversar com eles.

BRANDON - Não se preocupe, a Janet os estará bajulando. Pobrezinha... Fez de tudo para agarrar o david, mas tenho a impressão de que não vai conseguir. E você?

PHILIP - Não, acho que não.

BRANDON - Hoje em dia ela pode dar em cima do Kenneth. deve admitir como fui gentil, diante dos eventos recentes...

Interrompe sua fala e pega um castiçal.

BRANDON - Pegue o outro.

PHILIP - Para quê?

BRANDON - Esqueça, venha comigo.

Ambos vão com os castiçais até a sala da primeira cena.

PHILIP - O que vai fazer?

BRANDON - Verá. É brilhante.

Brandon coloca o castiçal em cima do baú onde está o corpo de David.

PHILIP - Que diabos está fazendo?

BRANDON - Transformando nossa obra em obra-prima.

PHILIP - Está exagerando.

BRANDON - Por quê? O que quer dizer? Achei que seria agradável jantarmos aqui, sobre isto. Não é uma ótima idéia?

PHILIP - Ao menos assim ninguém tentará abri-lo.

BRANDON - Acho que não me dá valor.

PHILIP - Estou começando, Brandon.

BRANDON - Vamos, não temos muito tempo, a Sra. Wilson logo retorna.

PHILIP - Esqueceu-se de pedir a chave a ela?

BRANDON - Não me esqueci, estou com a chave dela. Eu disse a ela que tinha perdido a minha.

PHILIP - Que bom. Como lhe explicará isto?

BRANDON - Não lhe explicarei.

Ambos vão levando os talheres e a louça para cima do baú.

PHILIP - Precisamos de uma desculpa.

BRANDON - Não queremos deixar o convidado sozinho.

PHILIP - Precisamos de uma desculpa para os outros.

BRANDON - Muito bem, vou pensar. Você fica muito nervoso, muito facilmente. Temos uma simples desculpa bem aqui. (pega um livro) Com o que se preocupa? O velho Sr. Kentley vem mais para ver esses livros, o que pode ser melhor do que colocá-los na mesa de jantar, onde o pobre velho possa facilmente pegá-los? Amáveis, não somos?

Toca o telefone. Brandon coloca o livro sobre o baú e o atende; ouve por uns segundos e, apressado, volta-se a Philip.

BRANDON - Cuide dos livros.

PHILIP (bem nervoso) - Quem é?

BRANDON - A Sra. Wilson.

Brandon vai em direção à porta de entrada. Philip permanece e pega os livros, até que.

PHILIP - BRANDON!!!

Brandon aparece depressa.

BRANDON - Mas o que...? O que lhe deu para gritar? O que foi?

Brandon vê que uma parte da roupa de David está para fora do baú.

BRANDON - Arranque logo!

PHILIP - Não posso.

BRANDON - (arrancando o tecido) Se a Sra. Wilson estivesse aqui ela arrancaria. Uma idiotice dessas em frente dos outros é como uma confissão. (entrega uns livros a Philip) Tome isso e acalme-se. Se tivesse deixado a luz acesa, eu teria visto.

PHILIP - Tudo bem, você é perfeito!

Continuam a levar os livros para a mesa.

BRANDON - Temos de ser. Concordamos que só poderíamos cometer um crime. O crime de cometer um erro. Ser fraco é um erro.

PHILIP - Porque isso é ser humano.

BRANDON - Porque é ser comum. Nenhum de nós cairá...

A campainha interrompe a fala de Brandon, que vai em direção à porta e a abre. Sra. Wilson entra.

WILSON - Deve-me $2,40 pelo táxi, incluindo gorjeta. Não fosse o trânsito estaria aqui há meia hora.

BRANDON - Tudo bem, não esperávamos que chegasse antes.

WILSON - Procurei o patê de que gostamos em cinco lugares, mas o preço... Não quis desperdiçar nosso dinheiro. Fui àquela doceria no centro, onde o Sr. Cadell vai. Na nossa próxima festa...

Philip entra.

PHILIP - Boa tarde, Sra. Wilson.

WILSON - O que está havendo com a minha mesa?

BRANDON - Estamos passando as coisas para lá.

WILSON - Bem, achei que minha mesa estava linda.

BRANDON - Estava linda sim, mas o Sr. Kentley virá olhar os livros que tenho neste baú. Não vai querer que o coitado se ajoelhe para vê-los.

WILSON - Acho que ficou muito peculiar.

BRANDON - Peculiar?

WILSON - Principalmente com os candelabros, não combinam com nada.

BRANDON - Pelo contrário, acho que sugerem um altar cerimonial onde pode-se amontoar comida para o banquete do sacrifício.

WILSON - "Amontoar" é certo. Não tem espaço para colocar nada direito, não é Sr. Philip?

BRANDON - Vai conseguir arrumar.

WILSON - Será a minha morte. Que faço com os livros?

BRANDON - Coloque-os sobre a mesa de jantar.

WILSON - É uma loucura, se quer saber. Bem, tenho muito o que fazer para ficar discutindo. Mesmo assim, acho muito peculiar.

Sra. Wilson sai de cena.

BRANDON - Qual é o problema?

PHILIP - Tive certeza de que ela perceberia.

BRANDON - O quê?

PHILIP - A corda, é claro. precisamos encondê-la.

BRANDON - Por quê?

PHILIP - Por quê???

BRANDON - É, por quê? É um pedaço de corda, artigo comum numa casa. Para que esconder? Guaradremos na gaveta da cozinha.

Brandon vai em direção à cozinha, rodando o pedaço de corda e o guarda sem que Wilson veja.

BRANDON - Sra. Wilson?

WILSON - Sim.

BRANDON - Tem champanha na geladeira.

WILSON - Não serviremos champanha.

BRANDON - Serviremos.

WILSON (animada) - Se vai ser uma festa assim, vou me arrumar um pouco. Champanha na casa do Sr. Cadell só em ocasiões especiais. Uma vez eu e ele tomamos uma taça no meu aniversário.

BRANDON - Hoje terá a oportunidade de reacender o romance. (a Philip) Posso? (a Wilson) O Sr. Cadell virá.

WILSON - Minha nossa! O Sr. Cadell é muito gentil.

BRANDON - O Rupert vem. Pensei ter dito a você.

WILSON - Gostei de trabalhar para ele.

BRANDON - Não disse.

WILSON - Ele é um cavalheiro. Alguns dizem que é esquisito, mas sempre achei

Philip pára de acompanhar a conversa dos dois e vai para a sala de estar, apreensivo, levando um prato. Em seguida, Brandon o segue, levando outro prato.

WILSON - Poderiam me deixar terminar.

BRANDON - Pensei que gostasse do Rupert.

PHILIP - Eu gosto.

BRANDON - Bem, então...

PHILIP - Rupert Cadell é o que mais pode suspeitar.

BRANDON - É o que pode apreciar isto do nosso ponto de vista, o artístico. Isso é que é excitante.

PHILIP - Isso me assusta!

BRANDON - Abaixe o tom de voz. Com os outros seria fácil e chato demais. Quanto ao Rupert, uma vez pensei em chamá-lo para se unir a nós. Por que não? Quanto mais, melhor.

PHILIP - Ele não tem coragem.

BRANDON - Intelectualmente teria vindo, ele é brilhante, mas é um tanto fastidioso. Podia inventar e admirar, mas jamais concretizar. É onde somos superiores. Temos coragem. O Rupert não.

A Sra. Wilson aparece, trazendo um prato.

WILSON - O Sr. cadell ganhou uma perna ruim por sua coragem na guerra.

Campainha toca.

WILSON - Chegaram. Estamos prontos?

PHILIP - Nunca estarei tão pronto.

WILSON - Não toque piano o tempo todo para não se esquecer de comer. Está emagrecendo. Coma o patê antes que devorem tudo. Esperamos que seja um sucesso. Minha bandeja.

Brandon acende um cigarro.

BRANDON - Leve-a para a cozinha. Eu atendo a porta.

WILSON - Não seria esta correria se tivesse deixado minha mesa...

Sra. Wilson sai de cena.

BRANDON - A diversão começa agora.

Brandon vai atender a porta. Philip permanece, apreensivo.

BRANDON - Entre.

KENNETH - Como vai, Brandon?

BRANDON - Bem. Coloque o chapéu ali.

KENNETH - Obrigado.

BRANDON - Faz tempo, não é?

KENNETH - Por isso fiquei admirado ao telefone. Surpreso, eu diria.

PHILIP - Oi, Kenneth. Que prazer.

KENNETH - Igualmente. Alguma novidade?

PHILIP - Nada de mais. E você?

KENNETH - Preparando-me para os exames. Sempre começo antes de todos. Sou o primeiro a chegar?

BRANDON - Sim, você é.

KENNETH - Por que chego sempre tão cedo?

BRANDON - Porque chega na hora. Sra. Wilson, champanha.

KENNETH - Não é aniversário de ninguém, é?

BRANDON - Não fique preocupado, é quase o contrário.

KENNETH - O contrário?

BRANDON - O Philip partirá temporariamente. Vou levá-lo a Connecticut depois da festa.

KENNETH - Para onde vai?

PHILIP - Para a casa da mãe do Brandon. Vou ficar trancado.

KENNETH - O quê?

BRANDON - Para praticar seis horas por dia. Consegui uma apresentação para ele.

PHILIP - Na Prefeitura.

KENNETH - Que maravilha! Espero que dê um show.

PHILIP - Obrigado.

Parte 2

Wilson surge trazendo um balde de gelo com champanha.

BRANDON - Toda enfeitada!

WILSON (vaidosa, arrumando o cabelo) Você acha?

Wilson sai de cena, sorrindo. Servem champanhe a Kenneth.

PHILIP - O que foi?

KENNETH - Sinto-me honrado.

BRANDON - E por quê?

KENNETH - Parece uma pequena festa de despedida.

BRANDON - Matamos dois coelhos com uma cajadada só. É para o Sr. Kentley.

KENNETH - (triste) O pai de David?

BRANDON - Sim.

KENNETH - David virá?

BRANDON - Mas é claro?

KENNETH - Quem mais vem?

BRANDON - Ninguém que não conheça. Os Kentley, a Janet Walker.

KENNETH - A Janet.

BRANDON - Sim. Achei que ficaria feliz em vê-la. Não ficará?

KENNETH - A Janet e eu terminamos, Brandon. Não sabia?

BRANDON - Sinto muito, não sabia.

KENNETH - Você sabia, Philip?

PHILIP - Ouvi dizer, mas não presto atenção a estas coisas.

KENNETH - Deveria prestar.

PHILIP - Por quê?

KENNETH - A Janet e o David estão...

Campainha toca. Wilson atende.

JANET - Olá, Sra. Wilson.

KENETH - (Olha sua taça vazia) Posso?

BRANDON - Sirva-se. Anime-se, tenho a impressão de que agora terá chance com ela.

KENNETH - O que quer dizer?

Brandon e Kenneth vão receber Janet à porta.

BRANDON - Janet!

JANET - Ei, pessoal. (abraça Brandon) Anjo. Cuidado com meu cabelo. Como está cheiroso. O que é?

BRANDON - O perfume que me deu no Natal passado.

JANET - Sabia que tenho bom gosto.

BRANDON - E tem. Está bonita.

JANET - Quando acabar de pagar já não estarei. (Brandon ri) É engraçado? Nunca sei quando sou engraçada. Quando tento ser dou a maior mancada. Philip querido. (abraça-o) E esse boato de você na Prefeitura? Vai nos pregar uma peça mórbida e ficar... (ao ver Kenneth) horrivelmente famoso.

BRANDON - Já se conhecem.

JANET - Olá, Ken.

KENNETH - (sorrindo) Olá, Jan.

JANET - Foi fascinante, não foi? Parece que fiquei sem corda.

BRANDON - Que me diz de um champanha?

JANET - "Olá, Champanha"? Entendeu o que digo sobre tentar ser engraçada?

Brandon serve champanha a Janet.

JANET - Como anda, Ken?

KENNETH - Bem, obrigado. E o emprego novo?

PHILIP - O que está fazendo?

JANET - Escrevendo a mesma coluna sobre como manter o corpo bonito.

PHILIP - Para quem agora?

JANET - Uma revista chamada "Allure". (pega a taça e bebe) Obrigada, amigo. Esse quadro não é novo?

BRANDON - É, você gostou?

JANET - Sim. O que é?

BRANDON - Jovem primitivo americano.

JANET - Tenho uma jovem irmã americana. Tem três anos e faz coisas primitivas.

Todos riem. Ela fala baixo a Brandon.

JANET - Seu safado. (a todos) Não tem outro novo ali na entrada?

BRANDON - Acho que não. Qual?

Ela aponta para uma parede vazia, do outro lado.

JANET - Este. (falando baixo) Podia te estrangular.

BRANDON - O que fiz agora?

JANET - Seu senso de humor chega a ser malévolo.

BRANDON - Do que está falando?

JANET - Por que convidou o Kenneth?

BRANDON - Por que não?

JANET - Sabe muito bem por que não. Desmanchamos há tempos. Estou quase noiva do melhor amigo dele.

BRANDON - O David?

JANET - Sim, o David. As coisas ficaram perfeitas agora.

BRANDON - Sinto muito, mas é difícil acompanhar seus namoros. Depois de mim veio o Kenneth, e agora o David. Por que trocou o Kenneth pelo David?

JANET - Obviamente ele é mais simpático.

BRANDON - E certamente mais rico.

JANET - Isso foi baixo, até mesmo para você.

Voltam a outra sala.

JANET - Há quantos anos eu disse: "Faz cócegas?" Não me diga.

KENNETH - Soube que Rupert virá.

BRANDON - Foi convidado. Nunca se sabe.

KENNETH - Espero que venha. Como está ele?

JANET - Quem é ele?

KENNETH - Rupert Cadell. Foi nosso diretor no colégio.

JANET - Diretor desses três anjos.

BRANDON - Quatro. Tentou ensinar o David também.

KENNETH - O Rupert agora é editor, não é?

JANET - De sucesso? Talvez me dê emprego.

BRANDON - O Rupert só publica aquilo de que gosta, geralmente filosofia.

JANET - Letra pequena, muitas palavras, poucas vendas.

BRANDON - O Rupert é extremamente radical. Sabia que seleciona os livros baseado na idéia de que as pessoas podem pensar, além de ler? É interessante, gosto dele.

KENNETH - Sempre gostou. As discussões que costumavam ter na escola. Brandon ficava por horas aos pés do mestre.

Brandon aos pés de alguém??? Quem é este Rupert?!

KENNETH - Ele contava as coisas mais esquisitas, não é?

JANET - Que tipo de coisas?

BRANDON - Acho que o Kenneth quer dizer... a impaciência de Rupert com convenções sociais. Por exemplo, acha que assassinato é crime para a maioria, mas um privilégio de poucos.

A campainha toca. Wilson surge, apressada. Brandon abre a porta.

BRANDON - Tudo bem, eu atendo. (abre-a) Sr. Kentley, que bom que veio.

Sra. Kentley e Sra. Atwater entram.

KENTLEY - A Sra. Kentley não está bem. Trouxe minha irmã, a Sra. Atwater. Ficará conosco.

BRANDON - Será um prazer.

Wilson pega os chapéus e sai de cena.

ATWATER - O prazer é meu, meu rapaz. Estou em Nova York há duas semanas. Alice tem estado doente o tempo todo e Henry fica catalogando sua biblioteca.

KENTLEY - Às vezes leio um de meus livros.

ATWATER - Estou de visita, Henry. É minha segunda festa. Acho que é justo.

Wilson volta.

WILSON - Dê-me suas coisas.

ATWATER - (Entrega-lhe o casaco.) Obrigada.

WILSON - Sinto muito sobre a Sra. Kentley.

ATWATER - É só um resfriado.

WILSON - Nessa época pode ser perigoso. Espero que esteja de cama com muito suco de frutas.

ATWATER - Está. Obrigada.

Os dois homens tentam conversar, mas elas falam mais alto.

WILSON - Isso resolve o problema.

ATWATER - Resfriado perigoso no calor? Não entendo isso.

WILSON - Dois anos atrás peguei um. Fiquei de cama por três semanas.

BRANDON (afastando Wilson) - Com licença... Por aqui, Sra. Atwater.

Deixam Wilson falando sozinha e vão todos para a outra sala.

ATWATER - David!

BRANDON - Enganou-se. Esse é Kenneth Lawrence.

ATWATER - Sinto muito.

BRANDON - Tudo bem. Muita gente confunde o Kenneth com o David, mesmo quem não tem miopia.

Close nas mãos de Philip, que se cortou com uma taça.

KENTLEY - Não temos muita chance de observar a semelhança. Não andou estudando?

KENNETH - Estou tentando.

KENTLEY - Querida, a semelhança é apenas física.

BRANDON - Acho que conhecem a Srta. Walker.

ATWATER - Janet, querida. Terminei seu horóscopo antes de vir.

JANET - Conte.

ATWATER - As estrelas são generosas. Indicam casamento em breve, com um jovem louro alto, com um pai muito gentil.

KENTLEY - Eu disse isso a semana passada.

ATWATER - Sim, mas as estrelas confirmam.

JANET - Que maravilha.

BRANDON - Sra. Atwater, quero lhe apresentar o Sr. Philip Morgan.

PHILIP - Como vai?

ATWATER - Machucou sua mão?

PHILIP - Não é nada, foi só um corte.

BRANDON - O que houve?

PHILIP - Nada. O copo estava trincado e quebrou-se. Aceita um champanha?

ATWATER - Adoraria. Papai tomava uma taça todas as manhãs às 11h, mas Henry não gosta.

Philip e Atwater saem de cena.

BRANDON - Sr. Kentley, aceita uma taça?

KENTLEY - Prefiro um pouco de uísque com bastante água. O David está aqui?

Brandon vira-se para servi-lo.

BRANDON - Pensei que viria com vocês.

KENTLEY - Ele ligou-me avisando que nos encontraria aqui.

Brandon sai de cena. Ambos sentam-se.

JANET - De onde ele ligou?

KENTLEY - Nossa empregada que atendeu. Estava no clube estudando para os exames de tênis.

JANET - O David não precisa estudar, ele é muito inteligente.

KENTLEY - O David está indo muito bem.

JANET - Obrigada. Como está a Sra. Kentley?

KENTLEY - Como sempre. Agora está resfriada. Espero que o David chegue logo. Ela quer que ele ligue.

JANET - O David é o único filho.

KENTLEY - Meu também, mas permitirei que ele cresça.

JANET - Ligarei para ela avisando que ele se atrasou.

KENTLEY - Não se preocupe.

JANET - O David pode ter parado para vê-la.

Brandon volta com um copo e entrega-o a Kentley.

JANET - Posso usar o telefone?

BRANDON - Claro. Está no quarto.

JANET - Que aconchegante.

BRANDON - Pronta para outra?

JANET - Em breve.

Janet bebe e entrega seu copo vazio a Brandon, que vai em direção ao baú, perto de onde está Kenneth.

JANET - Agora estou. Obrigada.

KENTLEY - Que jovem charmoso. O David devia ser mais amigo dele.

JANET - Vou telefonar.

Janet sai de cena.

BRANDON - Kenneth, tem muito ar no seu copo.

KENNETH - Está bem, obrigado.

BRANDON - Leva isto para a Janet?

KENNETH - Claro. Por quê?

BRANDON - Nenhum motivo em particular. É dela. Achei que gostaria de levar para ela. Está no quarto, telefonando.

KENNETH - Quer que o David entre de supetão.

BRANDON - Seria um choque tremendo.

Kenneth sai de cena, levando os copos.

PHILIP - 14 de julho. Pode prever meu futuro?

ATWATER - Sou astróloga amadora.

PHILIP - Com certeza é muito boa.

ATWATER - Quer saber se sua apresentação será um sucesso?

PHILIP - Quero sim.

ATWATER - Vejamos. Nasceu em 14 de julho. É câncer, o caranguejo. É da lua. É influenciado pela lua. Posso ver suas mãos? Sabe a hora do seu nascimento?

Olha as mãos dele.

PHILIP - Não.

ATWATER - Bons dedos, fortes. Artísticos.

PHILIP - E a apresentação?

ATWATER - Estas mãos lhe trarão grande fama.

KENTLEY - Considero-me um homem de muita sorte. Estou a postos para a abertura.

PHILIP - De quê?

KENTLEY - De sua coleção, por assim dizer.

PHILIP - Sim, claro.

Kenneth e Janet voltam.

ATWATER - Vai tocar. Que ótimo.

JANET - Sua esposa mandou um abraço.

KENTLEY - O David não estava lá?

BRANDON - Estará aqui num minuto.

Plano geral. Philip começa a tocar o piano. Rupert entra.

RUPERT - Seu toque melhorou, Philip.

BRANDON - Rupert, pensei que não viesse.

RUPERT - Mas me conhece.

BRANDON - Sra. Atwater, lhe apresento o Sr. Rupert Cadell.

ATWATER - (sorrindo) Encantada.

BRANDON - O Sr. Kentley.

Cumprimentam-se.

RUPERT - Como vai?

KENTLEY - Rupert Cadell, diretor de Somerville?

RUPERT - Costumava ser.

KENTLEY - Deve ter ensinado meu filho, David.

RUPERT - É um elogio. Como vai?

KENTLEY - Olá, amigo.

RUPERT - Sra. Walker.

JANET - Como sabe?

RUPERT - Brandon falou de você.

JANET - O que disse foi justo?

BRANDON - Você merece justiça.

RUPERT - Kenneth Lawrence, você cresceu! Ora, as aulas acabaram, pode dizer.

KENNETH - Não mudou nada. Prazer em vê-lo novamente.

RUPERT - (bravo) Por quê? (rindo) Não ligue, prazer em vê-lo novamente. (Vendo a taça de Kenneth) Isso parece ser champanha do bom. (olha para a garrafa) E é. Bom champanha. Qual é a ocasião?

BRANDON - Disse-lhe ao telefone. Começou sendo uma festa para o Sr. Kentley, para que pudesse ver as primeiras edições. O Philip e eu vamos para o interior.

Brandon serve uma taça a Rupert.

RUPERT - Também me contou isso.

BRANDON - Contei?

RUPERT - Sim.

BRANDON - Pensei em fazer uma festa de despedida para o Philip.

RUPERT - Portanto champanha. Entendo.

BRANDON - É verdade.

RUPERT - Sempre gagueja quando fica entusiasmado.

BRANDON - Fico sempre entusiasmado quando dou uma festa.

RUPERT - É mesmo?

Wilson entra, com uma bandeja.

WILSON - Sr. Cadell?

RUPERT - Sra. Wilson. O que temos aqui?

WILSON - Tenho aquele patê especial de que gosta.

RUPERT - Não gosto mais. Estou brincando.

WILSON - Você é terrível.

RUPERT - Obrigado.

WILSON - Comece a cortar. Trarei o resto em breve. Ah, Sr. Brandon, o encontrei.

BRANDON - Não faço a mínima idéia do que perdeu.

RUPERT - A maravilhosa Sra. Wilson. Talvez me case com ela.

Janet aproxima-se.

JANET - Parece uma delícia. Espero que David chegue logo.

RUPERT - Onde está o David?

JANET - Não faço a mínima idéia. Está tão atrasado que o Sr. Kentley está perturbado.

RUPERT - E você?

JANET - Eu? Estou com fome. (servindo-se)

RUPERT - Brandon, o que é isto?

BRANDON - Um cassone, da Itália.

RUPERT - Por que a comida está sobre ele?

BRANDON - Transformei a sala de jantar em biblioteca.

RUPERT - Sabia que encontraria outro uso para o baú. As estórias que ele contava sempre tinham um baú. "The Mistletoe Bough" foi sempre seu conto favorito.

JANET - Sobre o que era?

Kentley aproxima-se. Rupert acende um cigarro.

KENTLEY - Não me lembro do começo. Era sobre uma bela jovem. Ela era noiva. No dia do seu casamento escondeu-se num baú.

BRANDON - Isso mesmo.

KENTLEY - Infelizmente, a trava era de mola. Encontraram-na 50 anos depois.

JANET - Não brincarei assim.

BRANDON - Sirvam-se, por favor.

ATWATER - Falando de esqueletos, viram aquela coisa nova no Strand?

JANET - Sim, adorei.

ATWATER - Gostou? Ótimo. Não gostei da nova moça, deve ser de Escorpião.

JANET - Também não gostei dela, mas suas roupas eram fabulosas.

ATWATER - Simplesmente divinas.

JANET - Esplêndidas.

RUPERT - Preciso ver.

JANET - Claro, o homem de meus sonhos é James Mason.

RUPERT - Ele é bom?

JANET - Absolutamente fantástico.

ATWATER - Um sinistro atraente. É de Touro, muito obstinado.

RUPERT - É mesmo?

ATWATER - Mas tenho algo a confessar. Gosto do Mason tanto quanto do Errol Flynn.

JANET - Eu prefiro o Cary Grant.

ATWATER - Eu também. De Capricórnio. É divino! É um pedaço.

JANET - Verdade.

ATWATER - Foi incrível naquele filme novo com a Bergman. Como se chama? "O-não-sei-quê-do-não-sei-quê". Não, esse é o outro. Este é só "Não-sei-quê". Era como, sabe...

RUPERT - Tenho na ponta da língua.

JANET - Eu também. Era algo simples. Adorei. E a Bergman...

ATWATER - É do tipo Virgem, como todos estes... você sabe.

RUPERT - Fui ao cinema uma vez. Vi Mary Pickford.

ATWATER - Ela me encantou. Não gostou dela? O tipo Virgem, como todas as outras.

JANET - Em que a viu?

RUPERT - Não me lembro bem. Era "Não sei quê do não sei quê". Ou era apenas "Não sei quê? Ou algo bem parecido.

JANET - Acredito que nunca tenha ido.

Wilson aproxima-se.

WILSON - Se fosse você, moderava no patê. Calorias.

BRANDON - Não seja grosseira. Poderia ajudar a Sra. Atwater, Philip?

PHILIP - Com prazer. Sente-se, eu levo para a senhora.

ATWATER - Muito obrigada.

Atwater senta-se.

Parte 3

KENTLEY - Devo me desculpar pelo David. Não sei por que demora tanto.

BRANDON - O David é bastante popular.

JANET - Vou ajudar. Branca ou escura?

PHILIP - Um pouco das duas para a Sra. Atwater.

JANET - E você?

PHILIP - Não como isso.

JANET - Que estranho. Não conheço ninguém que não coma frango. (a Brandon) Conhece, Brandon? Deve conhecer? (a Philip) Por que não come?

PHILIP - Não como.

JANET - Deve haver um motivo. Freud diz que há uma explicação para tudo, até para mim.

PHILIP - Não tem motivo.

RUPERT - Se me lembro, tem um motivo engraçado. Não é, Brandon?

JANET - Sabia que teria de haver um. O que foi?

PHILIP - Não é nada de mais.

RUPERT - É bastante fascinante.

JANET - Conte, por favor.

BRANDON - Aconteceu há três anos em Connecticut. Minha mãe tem casa lá. Íamos comer galinha e fomos até a fazenda. Era uma bela manhã de domingo de primavera. No vale ouviam-se os sinos da igreja tocando. No quintal o Philip torcia o pescoço de três galinhas.

JANET - Minha nossa!

BRANDON - Uma tarefa que realizava com eficiência. Nessa manhã seu toque estava delicado demais, pois uma das galinhas de repente se rebelou. Como Lázaro, ressuscitou.

PHILIP - É mentira! Não é verdade. Nunca estrangulei uma galinha. Nunca estrangulei uma galinha!

JANET (rindo) - Perdão, mas é engraçado ficarem alterados por uma galinha morta.

BRANDON - Desculpem, fomos ridículos e muito rudes. Peço desculpas em nome dos dois pela estória.

RUPERT - Já acabou tudo?

BRANDON - Temo que sim.

RUPERT - Que pena. A certa altura poderiam ter-se estrangulado um ao outro.

ATWATER - Sr. Cadell, essa agora.

RUPERT - A honra de um homem está em jogo. Pessoalmente, galinha é um motivo tão bom para assassinato como uma loura, um colchão recheado de dinheiro ou qualquer motivo menos imaginativo.

ATWATER - Mas você não é a favor de assassinato.

RUPERT - Eu sou. Pense nos problemas que resolveria: desemprego, pobreza, fila para comprar ingresso no cinema.

ATWATER - Devo dizer que foi tão difícil conseguir ingresso para o musical... Como se chama? Você sabe.

ATWATER - Uma coisa com aquela pessoa.

RUPERT - Querida Sra. Atwater, aplique cuidadosamente o dedo no gatilho e ganha duas entradas na primeira fila. Tem dificuldade para entrar nos seus finos restaurantes?

ATWATER - Horrível.

RUPERT - Uma questão simples. Uma espetada com a faca, e passe logo para cá. Não, pule o corpo do garçom. Obrigado, aqui está a sua mesa.

ATWATER - Rupert, você é demais. Tem um recepcionista no hotel que eu adoraria espetar.

RUPERT - Desculpe. Não se pode usar facas em funcionários do hotel, estão na categoria "Morte lenta por tortura". Junto com namoradinhos, crianças e sapateadores. Proprietários seria outra estória. Procurando por um apartamento? Ligue para a Sra. Guilhotina, do Departamento de Instrumentos Afiados.

ATWATER - Que idéia divina! Se consegue o que quer... Mas todos estaríamos nos matando.

RUPERT - Afinal de contas, assassinato é, ou deveria ser, uma arte. Não uma das sete principais, mas uma arte. E como tal, o privilégio de cometê-lo reserva-se aos poucos indivíduos que são superiores.

BRANDON - As vítimas: seres inferiores em importância.

RUPERT - Obviamente. Cuidado, eu não sou dos extremistas que acham que deveria haver uma temporada aberta ao assassinato o ano todo. Pessoalmente eu prefiro a "Semana Corta Garganta" ou o "Dia do Estrangulamento".

KENTLEY - Talvez seja a idade chegando, mas devo dizer que não gosto desse humor mórbido.

RUPERT - O humor não foi intencional.

KENTLEY - Está falando sério?

BRANDON - Claro que está.

KENTLEY - Estão brincando comigo.

BRANDON - Por que acha isso?

KENTLEY - A idéia de assassinato ser uma arte restrita a poucos seres superiores.

RUPERT - Na temporada.

KENTLEY - Sei que não fala sério.

RUPERT - Falo. Sou uma pessoa séria.

KENTLEY - Quem decide se um ser é inferior e, como tal, uma boa vítima?

BRANDON (acendendo um cigarro) - Quem tem o privilégio de matar.

KENTLEY - Quem seria?

BRANDON - Eu, o Philip, talvez o Rupert. Desculpe, Kenneth, ficou fora.

KENTLEY - Falo sério.

BRANDON - Nós também. São alguns com superioridade intelectual e cultural que estão acima dos conceitos morais tradicionais. Bem e mal, certo e errado foram inventados para o homem comum, o ser inferior precisa disso.

KENTLEY - Então concorda com Nietzsche e a teoria do super-homem?

BRANDON - Concordo.

Hitler também.

BRANDON - Hitler foi um selvagem paranóico. Seus super-homens fascistas eram assassinos dementes. Enforcaria todos que restassem, mas mais por serem imbecis. Enforco os incompetentes e tontos. Há tantos.

KENTLEY - Devia me enforcar. Sou tão burro que não entendo se falam sério ou não. De qualquer maneira, não quero mais ouvir. Me perdoe... Seu desrespeito pela humanidade e pelos padrões do mundo civilizado.

BRANDON - Civilizado? Civilização pode ser hipocrisia.

KENTLEY - Talvez.

BRANDON - Rupert certamente...

RUPERT - Cavalheiros...

BRANDON - ...tem inteligência e imaginação.

KENTLEY - Agora já chega.

RUPERT - Philip, onde colocou os livros para o Sr. Kentley? Gostaria de vê-los.

BRANDON - Estão na sala de jantar.

PHILIP - Sr. Kentley, gostaria de ver os livros agora?

BRANDON - Perdão. Novamente acho que me deixei levar pelo assunto.

KENTLEY - Não tem problema.

PHILIP - É uma boa coleção. As primeiras edições.

KENTLEY - Gostaria de vê-los. Posso usar o telefone? Gostaria de falar com minha esposa, talvez saiba algo do David.

PHILIP - Claro, por aqui.

Philip e Kentley saem de cena.

RUPERT - Foi muito categórico no seu ponto de vista. Você está pensando em liquidar uns tantos inferiores?

BRANDON - Sou uma pessoa de caprichos. Quem sabe?

RUPERT - Entendo.

Rupert sai de cena.

BRANDON - Sra. Atwater, gostaria de ver os livros?

ATWTAER - Adoraria. Quando criança lia muito.

BRANDON - Todos fazemos coisas estranhas na infância. (Atwater sai de cena) Kenneth, ligue o rádio ou coloque um disco. Uma música ambiente ajuda muito.

Kenneth faz o que Brandon sugeriu.

JANET (atira com raiva um guardanapo sobre o prato) Ele é perverso, não é? Nos reunindo com música lenta.

KENNETH - Não ligue para ele, sempre faz essas coisas.

JANET - Vou à outra sala.

KENNETH - Ver os livros?

JANET - Deixar que Brandon me veja.

KENNETH - Importa-se com o que pensa?

JANET - Sei o que ele pensa. Acha que te troquei pelo David porque ele tem uma bela conta bancária.

KENNETH - Então por que vai?

JANET - Porque... Tenho vergonha de ficar aqui com você. (ele ri) Nunca imaginou que eu ficasse envergonhada?

KENNETH - Sinceramente não.

JANET - Fico e não gosto nada disso. Você devia ter a decência de ficar também.

KENNETH - Por quê?

JANET - Você desistiu de mim, lembra-se? Brandon adoraria saber disso. O que foi?

KENNETH - Nada, estou pensando.

JANET - Sobre o quê?

KENNETH - A vaidade feminina.

JANET - Também estou envergonhada porque...

KENNETH - Fale.

JANET - Você e o David eram ótimos amigos. Não são mais por minha culpa. Sou uma idiota.

KENNETH - Não é.

JANET - Então estou imitando uma. Por que dou uma de esperta com todos menos com o David?

KENNETH - Não brinca assim com o David?

JANET - Com o David fico mais calma. Graças a você.

KENNETH - A mim?

JANET - Naquele domingo feio em Harvard, quando você acabou tudo, o David e eu fomos caminhar. Eu estava muito chateada, não dava pra fingir que estava feliz. Me acalmei e deixei tudo fluir, meu eu verdadeiro. Ouviu essa frase? Pego-me dizendo estas coisas. Onde estará o David?

KENNETH - Não sou muito esperto.

JANET - Por quê?

KENNETH - Nunca tinha percebido que você... O Brandon e sua música ambiente. Você se apaixonou pelo David, não? Não entendo.

JANET - O quê?

KENNETH - O Brandon fez uma piadinha quando entrei. Disse que eu e você agora teríamos uma chance, sem o David.

JANET - Espere. O Brandon sabia sobre você e eu?

KENNETH - Até sabia sobre você e o David.

JANET - Como? Ele fingiu que não sabia.

KENNETH - O que está acontecendo?

JANET - Não sei, mas vou descobrir de uma vez. (A Brandon) Pode vir aqui um momento? (a Kenneth) Por que ele não tira as mãos das pessoas? (A Brandon) O que está tramando exatamente?

BRANDON - Ia trazer-lhe um café.

JANET - Corta esse charme. Por que disse que ele não precisava se importar comigo e com o David?

BRANDON - Não disse isso.

JANET - Foi o que quis dizer, quero saber por quê.

BRANDON - Muitas mulheres são charmosas quando bravas. Você não.

JANET - Corta essa.

BRANDON - O cavalheiro exibe seu lado feio.

JANET - Não acredito que o David venha.

BRANDON - Espere e verá.

JANET - Não preciso, ele nunca se atrasa. Se algo tivesse acontecido, ele telefonaria. Acho que você deu um jeito para ele não aparecer.

No segundo plano, vê-se Rupert acompanhando a conversa, intrigado.

BRANDON - Como sou inteligente!

JANET - Eu devia saber que não daria uma festa só ao Sr. Kentley. Tem de fazer algo que apele a seu senso de humor torpe. Espero que esteja divertindo-se, eu não estou.

Janet e Kenneth saem em direção a outra sala. Rupert entra em cena, trazendo consigo dois pratos de sobremesa.

RUPERT - Algo saiu errado?

BRANDON - A Janet tem o dom de ser chata às vezes. Porém, acho que eu devia... O que quis dizer com "saiu algo errado"?

RUPERT - Sempre planeja bem as suas festas, é estranho ver algo dar errado.

BRANDON - Ela está dando pela falta do David.

RUPERT - Na verdade, começo a sentir falta dele também.

BRANDON - Não sentimos todos?

Wilson entra na sala. Brandon vai para a outra sala.

WILSON - Duas sobremesas?

RUPERT - Uma para você e uma para mim, amor.

WILSON - (sorrindo) Sr. C.

RUPERT - Parece-me que os outros não querem sorvete.

WILSON - Eles precisam de algo refrescante. É uma festa peculiar. Não que me surpreende.

RUPERT - Por que não?

WILSON - Podia ter previsto isso antes. Acordaram com o pé esquerdo, passaram o dia todo alterados.

RUPERT - O Sr. Brandon diz que sempre fica assim quando dá uma festa.

WILSON - Seria a primeira vez que vejo. Geralmente eu preparo tudo. Olhe só para isso, mal comeram o frango.

RUPERT - O que foi tão diferente hoje?

WILSON - O que não foi? O Sr. Brandon estava apressado para que eu arrumasse a mesa. Estava bonita. Mas quando saí para fazer compras, de repente me disse para tirar a tarde toda de folga. A tarde toda de folga depois da correria de manhã?

RUPERT - Ele disse por quê?

WILSON - Acho que deu na veneta. Quando voltei, ele e o Sr. Philip estavam discutindo.

RUPERT - Sobre o quê?

WILSON - Mesmo que eu soubesse, acha que eu contaria?

RUPERT - Espero que sim.

WILSON - Eu não. Sou como um túmulo. Depois de tirar tudo isto, tenho de tirar os livros da mesa, trazê-los aqui e guardá-los no baú, onde estavam antes.

RUPERT - Por que colocou os pratos aqui?

WILSON - Não foi idéia minha, coloquei tudo na sala de jantar e estava bem bonito.

Philip aparece e vê Rupert conversando com Wilson, ela apontando para o baú e se aproxima.

PHILIP - Está reclamando da mesa e como é ruim servir daqui? É muito mais conveniente. As pessoas não precisam ir à sala de jantar para pegar a comida e voltar aqui para comer.

WILSON - Parece que foram para lá comer a sobremesa e tomar o café.

PHILIP - Sra. Wilson, por favor, sirva os convidados. Não dê sermão.

Philip vai até o piano e começa a tocar.

WILSON - Levantou-se com o pé esquerdo, não?

Wilson pega uma bandeja e sai de cena. Rupert aproxima-se de Philip.

RUPERT - Estou numa posição embaraçosa.

PHILIP - Como assim?

RUPERT - Parece que só eu me divirto.

PHILIP - A Sra. Atwater também.

Rupert acende o abajur próximo ao piano.

RUPERT - O que está havendo?

PHILIP - Importa-se de apagar isso?

RUPERT - Desculpe-me. (apaga o abajur)

PHILIP - Não gosto de tocar com a luz nos olhos.

RUPERT - Sabe, Philip. Fico intrigado quando as pessoas não respondem às perguntas.

PHILIP - Você me perguntou algo?

RUPERT - Sim, perguntei.

PHILIP - O que foi?

RUPERT - Perguntei o que está havendo aqui.

PHILIP - Uma festa.

RUPERT - Mas uma festa bem peculiar. Do que se trata?

PHILIP - Do que se trata? Pare de brincar de detetive. Quer saber algo, fale logo! (pára de tocar)

RUPERT - Nervos, nervos... Não pare.

PHILIP - Quero um drinque.

RUPERT - Pego para você. Continue tocando. O que gostaria? Uísque?

PHILIP - Conhaque.

RUPERT - Gosta dessa música, não é? Gostaria de lhe perguntar francamente o que quero saber. Infelizmente não sei de nada, simplesmente suspeito.

PHILIP - Disse...

RUPERT - Eu ouvi. Serve?

Rupert entrega o copo a Philip, que bebe um gole e apóia o copo sobre o piano.

PHILIP - Obrigado.

RUPERT - Usa isto?

PHILIP - Às vezes.

RUPERT - Pensei que era para principiantes. Devo dizer...

PHILIP - Pronto, eu pergunto. Do que suspeita?

RUPERT - Esqueci-me. Onde está o David?

PHILIP - Não sei. Por quê?

RUPERT - Brandon sabe?

PHILIP - Ele sabe?

RUPERT - Não sabe?

PHILIP - Não que eu saiba.

RUPERT - Ora essa.

PHILIP - Não sei. Pergunte ao Brandon.

RUPERT - Perguntei. Está ocupado demais com os dois outros cantos do triângulo.

PHILIP - Para quê? O que Brandon quer fazer com a Janet e o Kenneth? (ri)

RUPERT - Do que ri?

PHILIP - De nada.

RUPERT - Foi uma pergunta assim tão absurda?

PHILIP - Não há nada acontecendo.

RUPERT - Hoje você está mais que de costume, alérgico à verdade. É a segunda vez que não me diz.

PHILIP - Obrigado. Quando foi a primeira vez?

RUPERT - Disse nunca ter estrangulado uma galinha.

PHILIP - Está confuso. O Brandon inventou aquela piada sem graça.

RUPERT - Não inventou. Se analisar com cuidado, verá que sei que não inventou. Um ano atrás, eu estava na fazenda, lembra-se? Numa manhã eu o vi exibindo sua habilidade. Que eu me lembre, é um bom estrangulador de galinhas.

PHILIP - Só disse que a estória do Brandon não era real, não disse que não matei nenhuma.

RUPERT - Foi o que disse.

PHILIP - Não achei que o assunto fosse apropriado durante o jantar.

RUPERT - Podia ter dito isso.

PHILIP - Está bem, não disse.

RUPERT - Não está comendo. Por que mentiria para mim?

PHILIP - Não gosto de falar de...

RUPERT - De quê?

PHILIP - Não posso mais.

Brandon e Kentley surgem, com alguns livros, indo em direção ao baú.

BRANDON - Quero que os leve.

KENTLEY - É muita gentileza.

BRANDON - Sei que aprecia as primeiras edições mais que eu.

Philip se exalta, pára de tocar e levanta-se, transtornado.

RUPERT - O que foi? O que foi, Philip? Não quer dar os livros ao Sr. Kentley?

PHILIP - Não. Digo, não me importo. Só...

RUPERT - O quê?

PHILIP - Estão mal amarrados, só isso.

KENTLEY - O David nunca teve problemas para cuidar de si. Não consigo entender. Quando se atrasa, ele liga.

JANET - Sempre exigiu que eu fosse mais pontual.

KENTLEY - E deveria ser.

JANET - Hoje nem me reconheceria. Sou uma nova mulher, pontual como um relógio.

ATWATER - Isso não é feminino.

JANET - Talvez, mas escolho boas maneiras ao invés de feminilidade.

ATWATER - Parece papai falando.

Philip vai até a mesa servir-se de mais um copo.

BRANDON - Calma, Philip.

PHILIP - O Rupert está desconfiado.

BRANDON - Não está. Acalme-se.

PHILIP - Tome um drinque, Brandon.

BRANDON - Já bebeu muito.

PHILIP - Tire a mão do meu braço. Nunca mais me diga o que devo ou não fazer. Não gosto.

BRANDON - Fale baixo.

Rupert aproxima-se.

RUPERT - Espero não ter aborrecido o Philip.

BRANDON - Está só misturando as bebidas.

RUPERT - Você me parece nervoso também.

BRANDON - Pareço?

RUPERT - Sim. Algo está preocupando muito vocês dois. Algo...

Wilson os interrompe.

WILSON - Com licença, senhores. Uma senhora ao telefone para o Sr. Kentley ou a Sra. Atwater.

ATWATER - Deve ser Alice. Eu falo com ela, Henry.

WILSON - No final do corredor, à esquerda.

ATWATER - Obrigada.

WILSON - O primeiro quarto.

Atwater sai.

Vemos o baú e a Sr. Wilson tirando os pratos de cima dele e trazendo de volta os livros. Ouvimos apenas as vozes no seguinte diálogo.

JANET - Sr. Kentley, o David poderia estar em casa?

KENTLEY - Não sei, Janet. Espero que sim.

RUPERT - Não quero os assustar, mas se estivesse em casa, teria telefonado, e não a Sra. Kentley. Não acha, Brandon?

BRANDON - Não saberia dizer.

RUPERT - O David de que me lembro é muito educado e pontual.

JANET - Ele não mudou.

KENTLEY - Claro. Se não está em casa, onde poderia estar?

JANET - Não me pergunte, não sei.

BRANDON - Pode estar em mil lugares.

JANET - Onde?

BRANDON - Num clube... Os Bradley estão dando uma festa. Pode ter ido à casa da Janet.

JANET - Por quê?

BRANDON - Talvez tenha decidido ir buscá-la.

JANET - Liguei para casa depois de falar com a mãe dele.